Capítulo| 10

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Garzón

Imediatamente, ao acordar, tenho a sensação de que algo está errado

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Imediatamente, ao acordar, tenho a sensação de que algo está errado. Então, lembro-me da noite anterior, lembro-me de onde estou. Embora não esteja virada para ele, sei que está ao meu lado, ainda adormecido. Ele não faz barulho, mas eu sinto sua proximidade, a pressão no colchão, o calor de seu corpo próximo ao meu; até mesmo odor do ar é diferente, pesado, um cheiro masculino. Cuidadosamente, eu me virou. Atticus está escarrapachado, deitado de bruços um braço debaixo da cabeça e o outro, com a palma da mão virada para cima, ao lado do corpo. Embora a cama seja King-size, não parece ser grande o bastante para ele. Um lençol branco, emaranhado na altura da cintura, cobre a parte inferior de seu corpo. Apoiando-me sobre o cotovelo, observo-o enquanto dorme, inspeciono-o da mesma maneira que ele me inspecionou ontem à noite. Suas costas são bronzeadas e sua carne parece ter sido compactada, em pedaços sólidos, os músculos mostrando-se rijos até mesmo enquanto dorme. Olho de mais perto e vejo que ele possui sua própria coleção de marcas: uma cicatriz na bochecha, uma cicatriz dentada na parte posterior do ombro esquerdo e outra na parte de cima do ombro, ambas ocultas quando está de camisa. A cicatriz da têmpora eu já vi antes, redonda, uma pequena depressão do tamanho de uma moeda de vinte e cinco centavos. Seu médico não era tão bom quanto o meu — mas suponho que os homens consigam tolerar cicatrizes melhor do que as mulheres, porém, existe exceções, como eu. Não imagino que Atticus sinta-se nem um pouco incomodado com elas.

Ele se mexe, desloca o corpo para a direita e eu prendo a respiração, torcendo para que ele não acorde. A testa franze até formar uma leve carranca e depois ele se deita de lado, puxando consigo o lençol, os olhos ainda fechados, ainda adormecido, e ele se acomoda outra vez, com um suspiro. Sorrindo um pouco, repouso os olhos sobre ele, sobre seu rosto, plácido e sem afetação enquanto ele dorme, quase infantil, vulnerável. Então, penso em ontem à noite, em como me fodeu. Não havia nada de infantil naquilo. Estendo a mão e o toco, suavemente, coloco as pontas dos dedos sobre seu ombro, sinto o calor de sua pele. Despejo-o outra vez. Mesmo dormindo, ele deve sentir meu toque porque se mexe levemente, ergue o braço até o peito e afasta o lençol do meu corpo. Eu me sobressalto ao ver os feios hematomas nos locais onde me mordeu ontem a noite. Cobrem meu tronco com manchas escuras, raivosas, algumas delas com matizes azulados. Eu quase grito, então vejo o chicote de couro no chão, as longas tiras pretas numa pilha emaranhada, a extremidade saliente brilhosa e lisa. Preciso sair daqui.

Silenciosa e lentamente, saio da cama. Assim que começo a atravessar o quarto, Atticus emite um som, um leve gemido. Fico paralisada, prendo a respiração, esperando, mas ele não se move. O chicote, lembrança tangente de ontem a noite, escarnece de mim. Para ter certeza de que não o acordei, aguardo mais alguns minutos, ansiosa, então caminho até o meio do sótão e apanho minhas roupas, ainda amarrotadas na pilha deixada na noite anterior. Olho rapidamente para trás, em sua direção.

Ainda dorme.

Carregando minhas roupas e sapatos, desço a escada em espiral pé ante pé. No ar matinal, a casa parece fresca, preciso, acinzentada, quase severa. De cada uma das janelas arqueadas, a luz externa penetra através das cortinas, atravesso o cômodo em longas colunas tubulares, das quais partículas suspensas, tal como uma chuva do mais fino pó, flutuam preguiçosamente no ar. Visto-me apressadamente, pego as chaves do carro de cima da mesinha próxima à entrada e abro a porta da frente. Um feixe da mais clara luz escorre para dentro do cômodo. Olhando para trás, hesito, lembrando-me de repente do porta-retrato rachado. Vou até o outro lado do cômodo. A escrivaninha parece estar idêntica à última vez em que a vi: um computador com a tela vazia, montes de papel em caprichas pilhas, um prato de cerâmica cheio de clipes de papel e elásticos, caneta e lápis num recipiente plástico vertical e duas fotografias emolduradas empurradas para trás, para longe do caminho. A foto de Atticus e Astoria ainda está sobre a mesa da mesma forma que a deixei, inclinada levemente para a direita para que a rachadura não fique visível. Eu a apanho. É bem capaz que Atticus nunca tenha notado que quebrei o vidro. Abruptamente, ergo a vista. Ouço-o mexer-se lá em cima, na cama. Coloco o porta-retrato de volta sobre a mesa, onde é o seu lugar, envieso-o para a direita e depois atravesso o cômodo rapidamente. Não posso enfrentá-lo esta manhã.

Falsa SuttomissioneWhere stories live. Discover now