Capítulo| 9

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Garzón

Mas eu não esqueço

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Mas eu não esqueço. O dia inteiro — enquanto Atticus se encontra na vinícola, transferindo o vinho dos barris de Carvalho para os tanques de aço inoxidável, enquanto Astoria está no parreiral, supervisionando o desbaste das folhagens — passo o dia inteiro sem pensar em muito mais e, enquanto prepara o jantar, elabora um plano. Uma golfada de ar quente sopra em meu rosto quando abro a porta do forno. Usando uma toalha, removo a torta de ruibarbo — a erva fresca do jardim — e coloco-a sobre a bancada para esfriar.

Entro no banheiro e borrifo água fria no rosto. Seco-me com uma toalha, evitando olhar para o espelho. Tenho um problema com espelhos. Sei que as cicatrizes em meu rosto são mais imaginárias do que reais, mas quando eu olho no espelho me vejo como eu há quinze anos. Pontos cruzados, como trilhos de trem em miniatura, cobriam meu rosto, doíam quando eu me mexia, e meu maxilar, quebrado em seis lugares, foi fechado com arame. Os médicos, sem uma fotografia para mostrar como eu era, trabalharam durante muito tempo no que sobrou de meu rosto — nas órbitas dos olhos, no nariz, no queixo e no maxilar, na testa, no formato de minha boca — remendando, costurando, removendo ossos esmagados, acrescentando enxertos, esculpindo aquilo que é hoje o meu rosto. Restam apenas cicatrizes, quase invisíveis, próximas do couro cabeludo, sob do queixo, perto da orelha, mas eu ainda como vejo entrecruzando o meu rosto, cicatrizes de Frankenstein. Acho que sou como essas pessoas que emagreceram há pouco tempo e que se enxergam gordas para sempre. Cautelosa, olho para o espelho. Estou cansada de me ver desta maneira, sem o meu próprio rosto, sem minha identidade. Atticus nunca olhou no espelho sem reconhecer o rosto que o olhava de volta. Ele diz que não sei o que estou pedindo, mas ele não sabe o que pode me dar: minha identidade.

Mais tarde, esta noite, começarei o processo de reclamar o que é meu de direito.

Bato à porta de Atticus. Como janelas estão cobertas, mas incandescem tenuemente devido à luz que vem de dentro, ao fulgor constante da luz elétrica. Nada de velas esta noite. Embora eu espiasse através das janelas ontem mesmo, parece que foi há muito tempo. Desta vez eu não me aproximei da casa furtivamente e nem esperei até depois da meia-noite. Vim até aqui de carro, estacionei ao lado do dele e nem são nove da noite ainda.

Quando ele abre a porta, eu fraquejo por um único segundo. Na sua presença, sinto a minha própria inadequação, nitidamente. Afasto a sensação completamente e digo:

— Não quero esquecer.—

Ele olha para mim, uma das mãos apoiadas na porta, os cabelos louros levemente úmidos. Embora eu tenha deixado a casa principal logo  após a sua saída, ele, ao que parece, teve tempo de tomar banho e de trocar de roupa. Parece pronto para sair — calças sociais cinza. Camisa castanho-avermelhado, um vago traço de colônia, algo almiscarado. Não parece surpreso em mim ver. Abre a porta ainda mais.

— Estava esperando você. — diz.

Embora não convide, eu me espremo para passar por ele e entro em sua casa. Automaticamente, coloco as chaves de meu carro sobre a mesinha que fica ao lado da porta, como se tivesse feito isso muitas vezes. A iluminação é suave, os quadros das paredes escuras demais para ser vistos com clareza. Lá em cima, no mezanino, uma luz mais forte ilumina aquilo que, eu suponho, deva ser o quarto.

Falsa SuttomissioneWhere stories live. Discover now