Talvez nem fosse assim tão grave, um boato espalhado pelas fofoqueiras de plantão e ela por ser nova levou toda a culpa... nossa, que vontade era aquela de defender essa garota? Afinal eu nem a conhecia, poderia até ser verdade a história da calúnia...

- Bom, cara! As coisas vão se ajeitar, uma hora ou outra a verdade vai aparecer. - foi toda a resposta que consegui formular.

Pouco tempo depois, a menina entrou, de cabeça baixa e se sentou ao lado de Diana Barry que tocou sua mão e sorriu. Abençoei Diana por aquilo, Anne teria ao menos o apoio de uma amiga.

- Abram seus livros na pagina 32. Nós leremos em voz alta o poema O pescador, de Barry Cornwall. - o professor iniciou a aula.

Um dos poemas preferidos de meu pai, ele gostava de me ouvir declamar poemas e eu fazia de bom grado, sentiria saudades desses momentos...

- Diana Barry, levante-se e comece. - pediu o Sr Phillips.

- Uma vida ven... tu... rosa e triste como a dele não há. Segue o pescador solitário no mar...

- Venturosa de fato! - debochou o professor - Agora sente-se. Garota nova! Em pé, continue.

Ela se levantou determinada e começou a declamar com bastante desenvoltura e emoção.

- Sobre as águas revoltas tão longe de seu lar. Por um salário de fome ele precisa se lançar. Poucos corações para encorajá-lo em sua vida agourenta e ninguém, para ajudá-lo na luta contra a tormenta. Companheiro do mar e do ar silente, o pescador solitário deve seguir em frente...

- Ela é boa! Boa mesmo! - comentei com Charlie.

- ...Sem o conforto da esperança e da amizade assim. Ele olha para a vida e só vê o seu fim!

Ela era muito boa não só em ler, mas em interpretar o que lia. Em Alberta fui com meu pai a alguns sarais, neles as pessoas cantavam, tocavam e declamavam poesias e essa garota era melhor que todos eles, ela seria muito aplaudida num lugar como aquele. Mas em nossa escola, debocharam dela.

Enfim, a aula correu normalmente depois disso. E no intervalo comecei a juntar os comentários aqui e ali, acreditava que havia entendido senão toda, pelo menos parte da história (apesar de que devia creditar alguns detalhes aos exageros comuns em fatos fofocados).

Sim, Anne era o assunto em todas as conversas.

Anne Shirley havia sido adotada por Marilla e Matthew Cuthbert. Eu os conhecia, viviam em Green Gables, uma bela propriedade bem próxima da nossa, nossos vizinhos...

Pelo que eu sabia Marilla e Matthew Cuthbert eram irmãos, nunca se casaram e viviam reclusos. Eu havia falado poucas vezes com a Stra Cuthbert, que quase nunca saía de casa. O Sr Cuthbert saía mais pelas próprias obrigações da fazenda, mas falava bem pouco, apenas o essencial. Quase não os víamos nos eventos comunitários. Ter uma criança em casa talvez os fizesse bem.

Será que eles a adotaram para que cuidasse deles na velhice?

Bem, também ouvi uma história curiosa sobre os Cuthberts terem pedido um menino e Anne vir por engano, quase a devolveram, mas decidiram ficar com ela. Eu tinha esperança que essa parte fosse apenas exagero, pois seria muito triste sair de um lugar horrível como um orfanato para chegar aqui e descobrir que não a queriam. Se fosse verdade, devia ter sido desesperador. Mas enfim, eles mudaram de ideia, e essa parte da história terminou bem.

O nome da menina era sim Anne, com um E no final e ela sempre pedia que as pessoas o pronunciassem, achava que ficava mais bonito assim. Ouvi Josie Pye debochando disso com as garotas mais velhas.

Meu Deus, eu estava me sentindo a própria Rachel Lynde, a fofoqueira da região. Escutando as novidades da vizinhança.

Mas estava curioso sobre a menina, depois de nosso encontro no bosque e, por eu ter viajado por semanas todos vinham me contar. Então, apesar de tentar manter minha expressão neutra, prestei atenção em cada história que me contaram e ainda disfarçadamente escutava as conversas paralelas. Eu realmente estava agindo de forma estranha naquele dia!

Enfim, a tal calúnia era outra história horrorosa, ao que me parece. Anne viu alguma aproximação entre Prissy e o Sr Phillips e fez um comentário sobre alguma história distorcida que ouviu na casa onde era uma criada. Sim, apesar de ser apenas uma criança, Anne havia sido uma criada. E numa casa, pelo que percebi, pouco respeitável.

Nessa casa essa menina presenciou algum tipo de intimidade entre o casal e lhe foi contada uma história maluca sobre a mulher brincar com um rato de estimação que o homem trazia no bolso... Algo bem fantasioso, que foi usado para explicar o que aquela criança havia visto. E ela, em sua inocência havia contado para as colegas. Devo acrescentar que essa parte da história eu concluí por mim mesmo, baseado em partes dos comentários maldosos que ouvi.

Meu pai já havia me explicado como as coisas acontecem entre um homem e uma mulher há algum tempo. Ele nunca foi um homem de meias verdades, ou de inventar fantasias infantis para explicar as coisas. Quando achou que eu estava maduro o suficiente, me explicou como as coisas são. Então, entendi bem a tal história do rato, mas será que Anne entendeu? Será que ela sabia do que estava falando? Acredito que não.

E o pior, agora todos a estavam acusando não apenas de fazer calúnia, mas de ser suja e inapropriada para a amizade com meninas de família.

Todos a acusavam de caluniar Prissy, mas quem estava sendo caluniada era a própria Anne.

Hipócritas!

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Depois de escutar tantas histórias maldosas, saí à procura de Anne. Queria falar com ela, mostrar que nem todos a estavam condenando. A vi sozinha perto do riacho, mas como me aproximar?

Lembrei que tinha uma maçã e voltei para buscar, nossas maçãs eram consideradas as melhores da região, seria uma boa desculpa.

- Ei... ah... achei que você poderia gostar. - lhe ofereci a maçã - É da nossa horta e... é bem doce...

- Vá embora. - ela sussurrou entre os dentes.

- O que disse?

- Você tem que se afastar... agora! - ela continuava sussurrando.

Não entendi, porque eu não poderia falar com ela? Com certeza eu não estava nem um pouco preocupado com as opiniões alheias e meu pai não se importaria se eu conversasse com ela, pelo contrário!

Olhei em volta, procurando algum motivo para aquela reação, não vi nenhum.

- Desculpe, eu... não entendi...

Ela se levantou e me olhou furiosa, novamente me vi surpreendido por daqueles olhos, tinham um tom intenso e eram tão expressivos.

- Eu não posso falar com você!

- Por que não?

- Huf! - ela saiu furiosa.

Não podia falar comigo? Como assim? Talvez alguém tenha se incomodado por eu tê-la acompanhado mais cedo, mas quem se incomodaria? Ou talvez ela simplesmente não gostasse de mim.

Não, isso era inaceitável. Eu estive preocupado com ela o dia todo, era o único (com exceção de Diana) que havia sido amigável! E ela simplesmente me repele?

Agora estava determinado, iria lhe dar aquela maçã, ela querendo ou não.

My Anne with an EWhere stories live. Discover now