CAPÍTULO 2 - A BRUXA

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Anastácia fechou os olhos e tentou se lembrar dos detalhes da última festa em que estivera com seu Mestre, o poderoso mago Valentim. Havia sido o aniversário de um elfo e o sobrinho favorito do rei havia estado lá. Isso. E ele havia dançado uma sambalsa com Anastácia e ela, que sempre dançara tão bem quanto uma jaguatirica manca, deixara todos deslumbrados com sua desenvoltura. Claro que ela havia se colocado sob o efeito de um feitiço da dança, um feitiço que só aprendizes de nível avançado conseguiam... Não, espere. Aquilo não estava certo. Ela não havia dançado com o sobrinho do rei e sim com o elfo de cabelos dourados. Ou era o sobrinho do rei quem tinha cabelos dourados?

Era tão difícil lembrar das coisas quanto tudo não passava de uma mentira.

Abriu os olhos e encarou o teto descascado e os pontinhos de mofo que se espalhavam pela parede onde sua cama ficava encostada. Suspirou, se sentindo exausta. Mentir era cansativo e ter de se lembrar de suas mentiras para não se contradizer era ainda pior. Mas que outra opção ela tinha? Admitir toda a verdade para sua irmã? Que seu Mestre era um fracassado e ela nunca tivera nem mesmo um único minuto de aprendizado nas artes da magia e dos sortilégios?

Ela se levantou e encarou seu reflexo no espelho sujo e empoeirado, encostado sobre uma cômoda sem gavetas, se fixando em seus olhos pequenos e escuros. Aqueles mesmos olhos que fizeram Valentim jurar que ela era uma feiticeira nata e tomá-la como aprendiz, longos e tenebrosos seis meses atrás. Sim, seus olhos eram pequenos e sim, eram escuros como um céu de meia-noite. Mas provavelmente aquilo não significava nada. Magos e feiticeiras eram apenas mentirosos que atraiam jovens tolos e ingênuos e os arrastavam para o outro lado do reino e depois se trancavam na escuridão de seus quartos e nunca mais davam as caras de novo.

É claro que ela sabia que não era esse o destino que todo aprendiz enfrentava, mas era certamente o que lhe coubera. Não era exatamente um capricho de Valentim passar o dia fechado em seu quarto, com a cabeça careca escondida por lençóis cada dia mais imundos, era culpa da profunda tristeza em que ele estava mergulhado. No mesmo dia em que chegaram à Barreira do Ouro, Valentim descobriu que seu pequeno palacete havia sido confiscado por motivos nunca explicados e que todos os moradores da pequena cidade estavam proibidos de dirigir a palavra a ele, sob pena de ter a língua cortada. Sem lar e isolado, a única ação da qual Valentim foi capaz foi de entregar um prego dourado a Anastácia e murmurar "Eu tenho uma cabana no pântano, mas você vai ter que destrancar a porta com esse prego. A chave ficou dentro do palacete".

Essas foram as últimas palavras que o mago emitiu, caindo depois em um silêncio profundo como se ele próprio estivesse sob a lei de não dirigir a palavra a si mesmo.

Assim que conseguiram entrar na cabana, depois de Anastácia passar um dia e uma noite inteira lutando contra a fechadura, apenas para descobrir depois que a porta estava destrancada o tempo todo, Valentim se escondeu em seu quarto, cabendo a Anastácia cuidar da casa e de si mesma. Ela, que achava que estava indo aprender os mais obscuros mistérios da magia e realizar as mais complexas feitiçarias que desafiavam o tempo e o espaço, se viu varrendo pelo menos dois quilos de poeira por dia, lutando contra sapos com cabos de vassoura e lavando suas roupas em uma panela.

Parte dela sentia pena de Valentim e a outra parte sentia vontade de sufocá-lo com o travesseiro. Mas de que isso adiantaria? Ela ainda ia ter de admitir a verdade quando fosse atrás de irmã e provavelmente acabaria sendo presa nas minas de ouro por assassinato – ou não, já que aparentemente não havia uma única alma no mundo que se importasse com o mago Valentim.

Aos dezesseis anos, Anastácia se sentia cansada e desiludida e suas mentiras eram tudo o que ela tinha para alegrar sua vida. Às vezes ela podia escrever doze cartas em um único dia, mas tinha o cuidado de só enviar uma por vez ou sua irmã poderia suspeitar de alguma coisa, começando pelo tempo livre que ela tinha para escrever tanto.

O Demônio, a Bruxa (e a irmã dela) [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now