Capítulo VII

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Carlos Montenegro voltou a si, como se tivesse retornado de uma traumática sessão de hipnose. Um leve piscar da lâmpada incandescente o deixou incomodado, e uma sensação gélida tomou conta do lugar. O pedaço de papel em suas mãos e as coisas que nela estavam escritas eram perturbadoras. Não pode ser... não pode ser. Como seria possível? Já faz tanto tempo e... Ele ficou nauseado ao lembrar.

A carta em suas mãos veio da cidade a qual desejou nunca mais voltar. Montenegro olhou para o selo no verso do envelope. Não tinha como estar enganado. A imagem da pequena igreja de Santana.

Ele voltou a ler. A angústia e o medo descritos em cada linha daquele papel. A.M., A.M... - repetiu ao final, achando ouvir a própria voz da jovem sussurrando nos ouvidos. Como nos sonhos...,pensou.

Ele releu tentando encontrar algo nas palavras que o fizesse acreditar que tudo só passava de uma coincidência estranha.

* *

O fim de tarde havia chegado e com ele o dia iluminado se tornou um céu chuvoso acompanhado de trovões e relâmpagos. A dúvida em acreditar no que estava diante de seus olhos era intrigante, mas Montenegro não teve como duvidar. As palavras em grafite naquele pedaço de papel velho eram de sua namorada, Amanda Marcondes. Mas como? Ele estava lá, ele viu seu corpo no caixão. Não poderia ter se enganado. E se não fosse ela, por quê? A data na carta dizia que fora escrita três anos depois que havia deixado Santana.

Os trovões a cada minuto ficavam mais intensos e constantes. Era como se estourassem dentro de sua cabeça. Por que isso agora? A carta. Como... Ele parou em uma espécie de estalo ao decidir o que fazer. A tempestade na rua era assustadora e somente em extrema urgência alguém colocaria os pés para fora de casa.

Carlos fechou a porta, pegou a jaqueta de couro sobre o sofá e colocou a carta em seu bolso interno. Voltou a abrir a porta, indo na direção da casa do outro lado da rua. Para seu azar, o portão estava trancado. Agora era ele que apertava constantemente a campainha e chamava alto o nome de Nádia. A garagem ao fundo estava com a porta fechada. Não teria como saber se estaria em casa, mas, quando um relâmpago iluminou parte da rua, ele achou ter visto a silhueta de alguém de pé olhando pela janela em sua direção.

- NÁDIA!!! - chamou ele em bom som, apertando o botão.

Então pensou.

Montenegro avistou o compartimento usado para colocar o lixo. Um cubículo de mais ou menos um metro por um metro e meio, que ficava fixo no muro com grades em frente à casa. Ele subiu temendo escorregar e um terrível acidente lhe acontecer. Passou uma perna e depois a outra, pulando para dentro do cercado. A grama que cobria toda a frente da casa estava ensopada e, quando tocou o chão, pôde ouvir o som pesado se chocando com a grama lamacenta. Seus sapatos ficaram enlameados, mas o que lhe interessava era descobrir se Nádia estava em casa.

Tudo foi em vão. Seus chamados não foram atendidos.

- Pra onde foi essa... - esbravejou batendo uma última vez à porta. Suas roupas estavam ensopadas e a calça com restos de grama fresca e lama.

Voltar para o lado de fora foi mais complicado, mas Carlos conseguiu. Verificou o bolso interno da jaqueta. O pedaço de papel estava um pouco amassado, mas seco. Aquele pequeno exercício de atravessar às pressas a rua, saltar e ressaltar o portão de Nádia o deixou ofegante. Malditos cigarros!

Montenegro retornou para sua casa incerto. Tudo estava acontecendo estranhamente rápido. Muita coisa não fazia sentido - na verdade nada fazia sentido. Receber uma carta da sua namorada. Ela está morta!, pensou ele. Mas...

Na última gaveta da cômoda, onde guardava filmes e livros que há tempo não assistia e nem lia, retirou uma velha caixa de sapatos. Procurava por algo que ajudaria a explicar. Então encontrou. Era um cartão feito num pedaço de cartolina amarela. Tinha o desenho de dois corações com os nomes Carlos e Amanda. Uma flecha representando a Flecha do Cúpido atravessava ambos. No verso, uma pequena declaração de amor.

 No verso, uma pequena declaração de amor

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Carlos analisou com perícia as duas letras. Há quanto tempo tinha recebido aquele cartão? Dentro da caixa havia outras coisas e também um anel de prata. Ele comparou. A letra de uma pessoa é como se fosse sua impressão digital. Na fase adulta, são raros os casos em que ela sofre alguma mudança, a não ser quando a pessoa pretende disfarçar. Mas Montenegro descartou essa possibilidade. E copiar a letra de alguém requer muita prática. Seu espanto foi grande e a certeza de que Amanda escrevera aquela carta se tornou mais real. Milhares de coisas passaram em sua cabeça. Por que depois de tanto tempo? Os sonhos onde era perseguido por ela e seus pedidos de ajuda... Deixar Santana para trás foi difícil, mas Montenegro sabia que não conseguiria continuar sem ter quem mais amava ao seu lado. Por isso fez o que fez.

Na rua, a chuva caía feito um temporal e o barulho constante sobre os telhados lhe fez tomar a decisão mais estúpida, porém mais plausível que poderia tomar. Deixar tudo para trás e voltar para a cidade onde nasceu e cresceu, motivado por uma carta que foi escrita por Amanda após sua morte. Era com certeza a coisa mais louca e sem sentido que poderia fazer, mas... o que restava para Carlos Montenegro? Já perdera tudo uma vez. Não havia nada que o prendesse onde estava. A última coisa que gostaria que acontecesse seria acabar feito um velho, passando os dias e as noites acompanhado de alguma mulher sem saber se realmente a amava, ou alcoolizado, até a morte vir e o levar. Chegou a pensar nisso uma vez, mas sua fraqueza foi maior, então deixou de lado o fim trágico. Quem iria lamentar pelo corpo?, pensou imerso no que estava disposto a fazer.

Colocou o cartão de volta na caixa de sapatos e o enfiou na gaveta. Dobrou a carta e, de novo, a guardou no bolso da jaqueta. As chaves do carro estavam em algum canto da casa. Como gostaria que elas tivessem um localizador sonoro igual aos telefones sem fio.

* *

Ao ir para fora, fechando a porta e girando a chave, ouviu o som dela se trancando. Tudo ficou em silêncio.

- Faça isso logo, antes que mais uma vez acabe desistindo do que quer fazer. - falou em sua cabeça e depois seguiu para o carro.

Quando deu a partida, ligando os faróis e o limpador de para-brisas, Montenegro viu adiante as luzes fracas nos postes iluminando mortiçamente a noite. As árvores que se estendiam dos dois lados balançavam com o vento. A rua estava fantasmagórica.



Andando SozinhoWhere stories live. Discover now