3.

76 18 13
                                    

| 8 de dezembro, 2017|

Tinha começado a chover quando acabei de comer a maravilhosa torrada, obrigando-nos a permanecer no acolhedor estabelecimento da Tia Ana durante mais algum tempo, o suficiente, até à chuva parar. Estávamos em silêncio desde então, a ouvir não só a chuva, mas também o barulho de loiça a bater uma contra a outra, as conversas alheias de quem como nós aproveitava o calor do café para se aquecer e a música de fundo dos anos oitenta. Não estava um ambiente mau, pelo contrário. Adorava o café da Tia Ana por ser um sítio calmo e descontraído onde podíamos relaxar a ler um livro ou estudar ao som da chuva. Cada um tinha a sua vida e ninguém se importava com os assuntos dos outros.

Frederico estava a mexer na sua caneca enquanto aquecia as mãos nela, por ainda estar quente. Não me parecia aborrecido, parecia estar em paz. Aqui estava seguro do que tinha acontecido lá fora, mesmo que estivesse com uma estranha que acabou de conhecer. É normal eu agir destas maneira impulsiva várias vezes, mas ele não o sabia. Ao início pareceu muito desconfiado, como se lhe estivesse a fazer uma partida ou algo do género. Porém, agora, parecia muito mais à vontade com a minha presença. Então desde que puxámos o assunto dos meus desenhos, transformou-se noutra pessoa. Quase... Era um assunto que o deixava mais disposto a falar comigo, e isso era bom porque ganhava a sua confiança.

Surpreendentemente, foi ele que puxou a conversa novamente.

- Em qual deles é que estavas a trabalhar à bocado?- apontou para os meus desenhos.

- Em nenhum em específico. Estava a tentar ganhar inspiração para um trabalho da faculdade que tenho de fazer. Nunca sei por onde começar.

Ficou a pensar um pouco sobre isso e depois pegou num guardanapo e pediu-me um lápis. Pegou rapidamente nele quando lho dei e fez um simples ponto preto no meio do guardanapo. Inclinei-me mais para a frente para ver o que ele estava a fazer.

- A minha mãe é desta área. Trabalha em museus e também faz as suas próprias obras. Um dos meus problemas para desenhar era também nunca saber por onde começar. Então ela ensinou-me uma coisa, que realmente ajudou bastante. Começas por fazer um ponto, num sítio qualquer - explicava, alternando o olhar entre o guardanapo e os meus olhos- Depois visualizas aqui que queres fazer a partir desse ponto. Se não souberes bem o que queres desenhar, traças uma ou mais linhas até te vir uma ideia à cabeça ou até se começar a formar alguma coisa com sentido, e a partir daí contínuas. Tenta.

Estendeu-me o lápis e o guardanapo e esperou que eu os agarrasse.

No trabalho, tinhamos de desenhar alguma coisa que envolvesse o corpo humano e o sentimento de tristeza. E como é que eu faço isso? Que parte do corpo é que eu posso focar para transmitir esse sentimento? A única coisa que me ocorria eram os olhos. São, como dizem, os espelhos da alma, então era fácil dar-lhes um olhar triste e solitário. Mas queria desafiar-me a mim própria e fazer algum diferente, algo que não fosse simples e significasse alguma coisa.

- Isto é difícil!- lamuriei depois de ter traçado já três linhas em direções diferentes.

- O que é que tu queres passar às pessoas, que sentimento queres transmitir?

Voltei a olhar para o que já tinha feito no guardanapo e tentei vê-lo de outra perspetiva. E se...

- Já sei!- as ideias começaram todas a instalar-se na minha mente e a imagem do que queria desenhar apareceu à minha frente.

- Vês?!, isto até resulta- ficou feliz por me ter ajudado e eu estava feliz por finamente saber o que vou fazer para o trabalho- Então, vais desenhar o quê?

- Não vou dizer!

Guardei o lápis de volta na pasta sobre o seu olhar aborrecido e chateado por não lhe ter contado o que queria desenhar. Realmente, esta coisa do ponto e dos riscos ajudou. Estou surpreendida! Nunca pensei que duma coisa tão simples resultasse uma das mais complexas obras que hei de fazer. Estava-lhe grata por ele ter ajudado, mas como é lógico, não lhe ia dar a satisfação e o prazer de saber o que me veio à cabeça quando olhei bem para o que estava a desenhar. Vou torturá-lo um pouco e se ficarmos amigos depois de hoje, ele há de saber.

Uma Cadeira e Dois Chocolates QuentesOnde as histórias ganham vida. Descobre agora