Capítulo Vinte e Quatro

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A lembrança da Samaris é como um bichinho que me morde sempre que paro de pensar por um segundo. Tento me distrair, mas não adianta. A ausência dela é uma constante e constantes são difíceis de esconder, difíceis de camuflar. Eu queria pelo menos poder entender o porquê disso acontecer. Ela me escreveu cada um dos motivos naquela carta, mas eles não me convencem, ou eu simplesmente não quero entender.       

            A noite de hoje será, na "melhor das hipóteses", agitada. Na "melhor das hipóteses" a Jéssica contará aos seus pais sobre o filho que está esperando com o meu mudo apoio moral ao lado. Eles entenderão, serão compreensivos e tudo acabará bem. Mas nós sabemos que a "melhor das hipóteses" é a mais difícil de acontecer.

            Vesti minha melhor roupa e fui até sua casa. Ela disse aos seus pais que queria me apresentá-los e que um jantar informal seria boa maneira de fazer isso. Tudo um claro pretexto para poder dar a notícia.

            Eu, sinceramente, não entendo o ponto de vista da Jéssica. Seria muito melhor falar de maneira rápida e indolor. Montar todo esse circo para contar o que houve só faz as coisas piorarem.

            O jantar era muito mais formal do que eu esperava. Havia pelo menos três tipos de talheres postos à minha frente, o pai, a mãe e a própria Jéssica estavam muito bem vestidos para a ocasião, havia música de fundo, um lindo castiçal no meio da mesa e eu estava começando a me sentir realmente incomodado com todo esse excesso de sofisticação.

            O silêncio era bem mais presente do que o diálogo, os assuntos ocasionalmente ocorriam e terminavam rapidamente. Ao que parecia, a única saída que eles encontravam era bombardear o visitante de perguntas aleatórias. Em alguns minutos de conversa,  já sabiam os nomes dos meus pais, a profissão deles, minha idade e até sobre os meus planos de carreira, (ponto esse em que menti inúmeras vezes, pois ainda não havia decidido sobre a minha futura profissão).

            Foi só quando o jantar acabou e a empregada apareceu servindo a sobremesa que o meu olhar encontrou o da Jéssica. Impecavelmente maquiada, impecavelmente penteada, praticamente calada durante o jantar inteiro - seus pais de nada estranharam, pelo visto. Ao contrário da Jéssica falante que se encontra na escola, em casa se encontrava uma Jéssica mais quieta, isso parecia normal para eles, em alguns momentos poderia ser confundida com uma boneca, quieta, com movimentos leves, apenas preocupada com a postura incrivelmente ereta da coluna, o talher que leva poucas doses de comida à boca, o mastigar lento e suave, seu corpo todo parecia sereno, exceto os seus olhos, os dois muito claros transbordavam agitação, angústia e medo. Era tão óbvio, me perguntava como seus pais não haviam reparado ainda numa coisa tão gritante como essa. Foi quando percebi que naquela casa ninguém olhava nos olhos uns dos outros).

            Mas os nossos olhos estavam fixos entre si. Havia um clima de comunicação muda no ar, ela me olhava como quem pede ajuda, não havia nada que eu pudesse fazer a não ser responder sua comunicação muda com um olhar encorajador. Jéssica tremia de forma quase imperceptível, quando tomou ar e disse:

            — Mãe. Eu... Eu queria te contar uma coisa.

            — Pois bem, minha filha, então conte. — Respondeu sua mãe sem nem ao menos olhá-la.

            — Eu não sei bem como dizer isso... Então eu vou contar uma vez. Da forma mais direta que eu consegui.

            — Filha, por que toda essa enrolação? Conte logo de uma vez.

Sua mãe agora a observava mais atentamente, seu pai ainda estava concentrado em sua mousse de chocolate para notar qualquer coisa que estava acontecendo naquela mesa. — Eu sentia um frio enorme no estômago.

            — Mãe... — Um pequeno fio de lágrima escapou de seus olhos e desceu pelo rosto, abrindo caminho entre a maquiagem. —... Mãe, eu estou grávida.

            Silêncio.

            — Desculpa, filha. — Disse a mãe. — Eu acho que não ouvi direito. O que você disse?

            — É isso que você ouviu! — Agora ela não tentava mais segurar o choro e as lágrimas corriam pelo seu rosto livremente. — Eu estou grávida. Estou esperando um bebê.

            — Como isso foi acontecer? — Falou em voz firme e raivosa o pai de Jéssica.

Ela não respondeu.

            — COMO ESSA PORRA FOI ACONTECER?!!! — Ele bate na mesa com força, fazendo com que tudo o que estivesse em sua superfície tremesse ameaçadoramente e levanta de sua cadeira em um salto. Parecia que ele realmente seria capaz de matar alguém — ME RESPONDE!!!!

Jéssica olhava para o chão e chorava muito.

            Nós sempre estranhamos as atitudes que os pais dos outros tomam quando ela não condiz com a atitude que os nossos pais tomariam numa mesma situação. Não tenho certeza de como os meus pais agiriam, mas eu certamente esperava que ao menos a sua mãe chegasse um pouco mais perto de Jéssica que chorava, soluçava e aparentava estar muito assustada. Esse afastamento físico da mãe que se aproximou de seu marido e deixou Jéssica sentada sozinha numa cadeira me deixou muito incomodado.

            A mãe também começou a chorar enquanto seu marido esbravejava furiosamente contra sua filha:

            — Mãe... — Eu não conseguia olhar para Jéssica, sua imagem chorando sozinha naquela cadeira era muito penosa para mim. —... Me desculpe. — Soluçou.

            — QUEM É O PAI? — Esbravejou o pai furioso apontando para mim. — ESSE MOLEQUE É O PAI?

            A minha surpresa foi quando a Jéssica respondeu:

— Sim. Estou esperando um filho do Ick.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora