Capítulo 19

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  Eu mudei meu nome. 

Nunca mais serei Kyle. Não ficaria nada de Kyle. Kyle Kingsbury estava morto. Não queriaesse nome nunca mais.   

  Procurei o significado de Kyle na internet e isso me derrubou. Kyle significava bonito. Eu nãoera. Procurei um nome que significasse feio, Feio (quem chamaria seu filho assim?), masfinalmente me fixei em Adrian, que significava – o escuro– . Esse era eu, o escuro. Todo mundo,entenda-se Magda e Will, me chamavam de Adrian agora. Eu era a escuridão. 

Eu vivia na escuridão também. Comecei a dormir de dia, recorrendo as ruas e usando ometrô durante as noites quando ninguém pudesse me ver. Terminei o livro do corcunda (todomundo morria) e agora estava lendo O Fantasma da Ópera. No livro, ao contrário da estúpidaversão musical de Andrew Lloyd Webber, o Fantasma não era um romântico perdedorincompreendido. Era um assassino que aterrorizava durantes anos a casa de ópera antes desequestrar a jovem cantora e forçá-la a ser a amante que tinham lhe negado. Sabia o que era meesconder na escuridão, procurando um pouco de esperança e não encontrar nada. Eu sabia o quesignificava estar tão só que chegasse a matar por isso. 

Queria ter uma casa de ópera. Queria ter um catedral. Queria poder subir no alto do EmpireState Building como King Kong. Entretanto, eu só tinha livros, livros e o anonimato nas ruas deNova York com seus milhões de pessoas estúpidas e ignorantes. Me escondia nas ruelas, atrás debares onde os casais iam ali para ficar. Ouvia seus grunhidos e seus suspiros. Quando via umcasal nessa situação, eu imaginava que eu era um homem, que as mãos da garota estavam sobremim, sua respiração cálida na minha orelha, e mais de uma vez, pensei em pôr minhas garras nopescoço do homem, matá-lo, e levar a garota ao meu lar privado e transformá-la em minhaamante quer ela quisesse ou não. Nunca tinha feito, mas isso me assustava só de pensar. Tinhamedo de mim mesmo. 

– Adrian, temos que conversar.

  Eu ainda estava na cama quando Will entrou. Estava olhando pela janela o jardim que eletinha plantado, com os olhos entrecerrados. 

– A maioria das rosas estão mortas, Will.   

  – Isso é o que acontece com as flores. É outubro. Logo desaparecerão até a primavera. 

– Eu as ajudo, você sabe. Quando vejo um que fica marrom, mas não cai, então eu as ajudo.As espinhas não me machucam muito. Eu me curo rapidamente.   

  – Então tem algumas vantagens, no final das contas.

 – Sim. Eu acho que tudo bem em ajudá-las a morrer. Quando vejo algo lutando assim, nãodeveria sofrer. Você não acha?  

  – Adrian...

 – Às vezes eu queria que alguém me ajudasse assim – pude ver Will me olhando fixamente. –Mas há algumas como a rosa vermelha, que ainda se agarram no galho. Elas não caem. Essas meenchem. 

– Adrian, por favor.– Você não queria falar das flores? Eu achava que você gostasse das flores, Will. Foi você queas plantou. 

– Eu gosto das flores, Adrian. Mas agora quero que conversemos sobre nossas aulas. 

– O que há com elas?  

– Não a temos. Me contrataram como professor e ultimamente a única coisa que isso temsignificado é o recebimento de uma enorme quantidade de dinheiro para ficar aqui e manter emdia as minhas leituras.

 – E isso não é bom? – Do lado de fora, a última rosa vermelha balançou com o vento que asoprou repentinamente. 

  – Não, não é bom. Aceitar dinheiro sem fazer nada em troca é roubar. – Pense que é umaredistribuição de riquezas. Meu pai é um maldito cretino rico que não merece o que tem. Você épobre e merece. É como esse cara que rouba o rico para dar ao pobre. Eu acho que há um livrosobre isso. Vi Piloto sentado nos pés de Will. Movi os dedos para tentar que ele viesse a mim. 

– E tenho estudado de certo modo. Li O Corcunda, O Fantasma da Ópera, Frankenstein.Agora estou lendo O Retrato de Dorian Gray.

 Will sorriu. 

– Acho que detectei um tema aqui.

  – O tema é escuridão – pessoas que vivem na escuridão. – Continuei movendo os dedos paraPiloto. O cachorro idiota não vinha. Talvez se discutíssemos os livros. Você tem alguma questãosobre– Esse Oscar Wilde – era gay? 

– Viu? Eu sabia que você tinha uma intuição aguçada, algo inteligente para contribuir... 

– Não me enrole, Will. Ele era?  

  E bem famoso. – Will aproveitou para empurrar Piloto. – O cachorro não vai até você,Adrian. Ele está tão desgostoso com você como eu estou, enfiado na cama de pijama até a umada tarde. 

– O que o faz pensar que estou de pijama? – eu estava. 

– Podo sentir o cheiro. O cachorro também pode. E ambos estamos desgostos. 

– Ok. Vou me vestir em um minuto. Contente? 

– Tudo bem, tudo bem. Mas me conte algo de Oscar Wilde. 

– Ele foi levado a juízo depois de ter uma aventura com o filho de um lorde. O pai do jovemdisse que Wilde tinha obrigado seu filho a participar da relação. 

Ele morreu na prisão. 

– Eu estou em uma prisão – disse. 

– Adrian... 

  -É verdade. Quando você é uma criança, dizem que o interior é o que conta. Que asaparências não importam. Mas não é verdade. Caras como Phoebus em O Corcunda, O Dorian,ou o antigo Kyle Kingsbury – eles podem usar as mulher e ainda podem se sair bem porque sãobonitos. Ser feio é como uma espécie de prisão. 

– Eu não acho que seja assim, Adrian. 

– Os cegos tem intuição. Pode acreditar ou não. Mas é verdade. 

Will suspirou. 

– Adrian, podemos voltar ao livro?

 – As flores estão morrendo Will.

 – Adrian. Se não deixar de dormir o dia todo e me permitir ser o seu professor, eurenunciarei.  

  Eu o olhei. Eu sabia que ele estava chateado comigo, mas nunca pensei que ele iria embora.

 – Mas, para onde você iria? – disse. – Deve ser difícil para você encontrar um trabalhoquando se é... quero dizer, você é...  

-É difícil. As pessoas acham que um cego não pode fazer coisas e não querem daroportunidade. Eles acham que seu problema é uma desvantagem. Uma vez um cara em umaentrevista me perguntou: O que acontecerá se você tropeçar e machucar um estudante? O queaconteceria se o cachorro mordesse alguém? 

– Então é assim que você se viu reduzido a professor de um perdedor como eu. 

Ele não disse nem sim nem não. Ele disse:  

  – Estudei muito para poder trabalhar, para não ter que ser mantido por ninguém. Não possome permitir ficar assim. 

Ele estava falando da minha vida. Isso era o que eu estava fazendo, vivendo às custas dopapai, sempre seria assim se eu não pudesse encontrar uma forma de romper o feitiço. 


–Faça o que tiver que fazer – disse. – Mas eu não quero que você vá.

 – Há uma solução. Podemos voltar a nossas sessões regulares de aula.     

  Assenti com a cabeça. 

– Amanhã. Hoje não, mas amanhã. Há algo que eu tenho que fazer hoje. 

– Tem certeza?

 – Sim. Amanhã. Eu prometo  

A feraKde žijí příběhy. Začni objevovat