Capítulo 17

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  Essa noite, pela primeira vez desde que me mudei para o Brooklyn, sai na rua. Esperei até anoite, e ainda que estivéssemos no começo de outubro, estava com um grande casaco com capuzque coloquei sobre o rosto. Envolvi um cachecol ao redor do meu queixo e bochechas. Caminheicolado aos edifícios, me virando para que as pessoas não me vissem, me escondendo nas ruelaspara evitar me aproximar demais de alguém. Eu não deveria ter que fazer isso, pensei. Sou KyleKingsbury. Sou alguém especial. Eu não deveria me reduzir a andar à espreitas nos becos, meescondendo detrás dos latões de lixo, esperando que alguém desconhecido grite: Monstro. Eudeveria estar com as pessoas. Ainda assim, me escondi e me agachei e andei às escondidas e porsorte passei despercebido. Isso foi o mais estranho. Ninguém me viu, nem sequer os que pareciamme olhar diretamente. Irreal. 

Eu sabia aonde ir. Gin Elliot, da minha sala em Tuttle, ela fazia as festas mais populares nacasa dos seus pais no SoHo quando eles estavam fora. Tinha estado observando-a no espelho,sendo que eu sabia que estariam fora este fim de semana. Não podia ir a festa – não como umdesconhecido, e desde então não como eu mesmo, como Kyle Kingsbury reduzido a nada. 

Mas achei que talvez, só talvez, eu pudesse ficar fora da festa e ver as pessoas entrando esaindo. Podia observá-los do Brooklyn, claro. Mas eu queria estar ali. Ninguém me reconheceria.Meu único risco era que se alguém me visse, eu seria capturado, tratado como um monstro, talvezme transformasse em uma criatura de zoológico. Não era um risco pequeno. Mas minha solidãome fez afrontá-los. Eu podia fazer isso. 

E ainda assim, as pessoas passavam perto de mim, pareciam me olhar, mas sem me ver. 

Eu me atreveria a pegar o metrô? Eu me atrevi. Era a única forma. Encontrei a estação quetinha visto tantas vezes da minha janela, e de novo voltei com a ideia que iam me colocar em umzoológico e que meus amigos iam fazer excursões para me ver, comprei uma ticket de metrô eesperei o próximo trem.  

  Quando chegou, não estava abarrotado. A hora de pique tinha passado. Apesar de tudo, mesentei separado dos demais passageiros, pegando o pior assento na parte de trás. Olhei pela janela.Ainda assim, uma mulher de um assento próximo se afastou quando eu me sentei. A observei,refletida no vidro, quando passou para meu lado, segurando o fôlego. Ela parecia poder ver meureflexo animal se tivesse olhado. Mas não olhou, simplesmente continuou, dando balançandocontra os movimentos do trem, enrugando o nariz como se cheirasse algo desagradável. Ela foipara a parte mais distante do vagão para se sentar, mas não disse nada. 

Então eu entendi. É claro! Fazia calor. Com meu casaco pesado e meu cachecol, parecia umindigente. Isso é o que eles achavam que eu era, as pessoas na rua e no trem. Por isso não tinhamme olhado. Ninguém olhava para os indigentes. Eu era invisível. Eu podia caminhar pelas ruas, eenquanto mantivesse o rosto escondido, ninguém repararia em mim. Eu era livre, de certo modo.

  Encorajado, olhei ao meu redor. Bastante seguro, ninguém me olhava nos olhos. Todosolhavam para seus livros, ou seus amigos, ou simplesmente... para o outro lado.

 Cheguei na rua Spring e sai, não tão cuidadosamente desta vez. Abri caminho pelas ruas maliluminadas, me ajustando ao cachecol ao redor do pescoço, ignorando a sensação sufocante, eficando de lado. Meu maior medo era que Sloane me visse. Se ela tivesse cometido o erro de falarde mim para alguém, com certeza, tinham achado brincadeira. E, portanto, ela estaria ansiosa parame apontar, para que soubessem que ela não estava mentindo. 

Cheguei ao apartamento de Gin. Lá tinha um porteiro, então eu não podia ir para o lobby.De qualquer modo, eu não queria, eu não queria lidar com a luz, os rostos, o fato de que a festaestivesse sendo celebrada sem mim, como se eu não importasse. Havia um grande jarro na porta.Esperei até que não houvesse ninguém por perto, então me deslizei para baixo, me deixandoconfortável ao lado dele. Um cheiro familiar encheu o ar, e levantei os olhar para as plantas. Willficaria orgulhoso de mim.

A festa provavelmente tinha começado por volta das oito, ou mesmo às nove, os últimosestavam entrando. Eu olhava como se a festa fosse um programa de câmera oculta, vendo coisasque supostamente eu não devia ver, garotas tirando a roupa intima das suas bundas, ou tomandouma última dose de algo antes de entrar no edifício, caras falando do que tinham nos bolsos eque usariam mais tarde. Eu podia ter jurado que alguns dos meus amigos olharam para mim, masninguém me viu. Ninguém gritou: Monstro! Ninguém nem sequer parecia se importar. Tudobem, mas ruim ao mesmo tempo. E então ela chegou. Sloane. Estava com os lábios grudados nosde Sullivan.

 Clinton, um dos garotos do último ano, em uma grande Pública Exibição de Afeto mostradoante meus olhos como em um filme para maiores. Eles podiam fazer isso na minha frente porqueeu era, mais uma vez, invisível. Comecei a me perguntar se talvez, na realidade, eu não era.Finalmente, entraram. 

E assim foi como passou a noite. As pessoas vinham. As pessoas iam. Por volta da meianoite,cansado e com muito calor, pensei em ir embora. Mas foi então quando ouvi uma vozfamiliar a uns passos acima da minha cabeça.  

  – Uma festa selvagem, não é? – era Trey. 

Ele estava com outro antigo amigo meu, Graydon Hart. 

– A melhor – disse Graydon. – Melhor ainda que a do ano passado. – Qual foi a do anopassado? – disse Trey. – Provavelmente eu estou muito cheio de poeira para lembrar.

Eu me agachei ainda mais baixo, desejando que eles fossem embora. Então ouvi meu nome. 

– Você sabe – disse Graydon. – No ano passado, quando Kyle Kingsbury trouxe aquelagarota que ele passou a metade da noite com a mão nas suas calças. 

Trey riu.

 – Kyle Kingsbury, um nome do passado. O bom e velho Kyle   

  Eu senti meu sorriso e esquentei mais ainda no meu longo casaco.

 – Sim, o que terá acontecido com ele? – disse Graydon. 

– Foi para o internato.– Acho que ele pensava que era bom demais para nós, não é? 

Fiquei olhando para eles, especialmente para Trey, esperando que ele me defendesse.

 – Eu não me surpreendia – disse Trey. – Ele sempre pensou que era bom demais quandoestava aqui: o senhor – Meu– Pai-É– Do– Noticiário. 

– Que idiota.

 – Sim. Eu fico feliz que ele tenha ido embora – disse Trey. 

Afastei o rosto deles. Finalmente, foram embora. 

Meu rosto, minhas orelhas ardiam. Tudo tinha sido uma mentira – meus amigos em Tuttle.Minha vida inteira. O que diria as pessoas se me vissem agora – me odiavam mesmo quando euera bonito. Ainda não sei como cheguei em casa. Ninguém reparou em mim. Ninguém seimportava. Kendra tinha razão em tudo.  

A feraWhere stories live. Discover now