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- Droga! Eu não fiz nada pra estar aqui, foi ela quem começou tudo! – Eu me debatia nas mãos do guarda.

- Cale-se! Você agrediu a outra detenta! – O policial gritava comigo, e me jogou de qualquer forma na sala branca e doentia.

Eu chorei, e chorei muito. Só estava me defendendo do que me faz mal, não era justo estar aqui sozinha. Aquela sala me dava claustrofobia, as paredes completamente brancas, pareciam ter sido pintadas à algumas horas. O chão era um piso negro e bem lustrado. Havia somente uma cama, um travesseiro e um vaso sanitário com pia no canto. Somente eu, e mais ninguém. Parando para pensar.. era até bom estar sozinha.. Não tinha ninguém para me atormentar, ninguém para me xingar ou me chatear. Era somente eu, não tinha ninguém, ninguém!

- Parabéns, Camila.. você é uma gêniazinha! – Me parabenizei.

Mas após algumas horas, senti a claridade daquele cômodo me sufocar. Estava cada vez mais perdida no quão limpa eram aquelas paredes, a cada mudança de foco, eu parecia viajar num universo completamente diferente. Era tudo branco, completamente branco e vazio. Senti uma leve tontura e quando vi já estava vomitando tudo o que havia comido durante o dia.

Ficar sozinha pra mim nunca foi um problema, na verdade era sempre a solução. Mamãe e papai sempre saíam pra trabalhar e me deixavam trancada no nosso velho apartamento. Desde o quatro anos de idade, até mais ou menos os nove – quando papai arranjou o emprego de meio período, e depois ficava comigo. Na solidão daquele prédio velho e sujo, eu buscava diferentes formas de me entreter, fosse gritando com as pessoas da rua pela janela, ou subindo nos móveis. Mas pela primeira vez eu estava me sentindo incomodada com aquele lugar, estava me sentindo vazia. Meu cérebro estava começando à projetar situações de alucinação extrema e não tardou para elas começarem a ecoar em meus ouvidos.

“Você é uma garota terrível, Camila!”

“Veja só onde foi se meter!”

“Machuque-se, machuque-se! Suje toda essa branquidão com o seu sangue!”

“Dê um aspecto novo pra esse lugar! Os guardas vão adorar!”

- Parem! Parem! – Eu batia em minha cabeça desesperada – Calem a porra da boca!

“Esse lugar é uma droga, estão faltando alguns desenhos na parede”

“Decore com o que você tem aí”

- Porra, parem de falar! Eu não quero ouvir vocês! – Fechei os olhos com força mas os rostos deformados apareceram em frente aos meus olhos.

Eram vários ao mesmo tempo, todos falavam ao mesmo tempo, mas eu só ouvia um por vez. Seus rostos diferenciavam em tipos horrendos de aberrações. Haviam aqueles sem olhos, que pagavam por olhar demais os erros dos outros. Haviam os sem ouvidos, que ouviam demais sobre a vida dos outros. Os sem boca, que falavam demais sobre a vida dos outros. E haviam aqueles que não possuíam rosto algum, somente deformações e borrões que me davam calafrios, alguns tinham chifres, outros o rosto costurado e sangrento. Mas havia um rosto em especial que me chamava atenção; era completamente pálido e não tinha órgão algum à não ser os olhos verdes. Era um rosto vazio, que se completava com o piscar deles, e me tirava toda a concentração do resto. E ele só aparecia raras vezes. Eu não gostava de vê-los, por isso eu precisava estar sempre calma. Eles só me assombravam quando eu fica nervosa ou tinha medo.

- Vão embora! – Gritei.

“Só quando você decorar um pouquinho dessa branquidão!”

Eu gritei como se fossem arrancar meus pulmões, e logo em seguida caí em um choro profundo. Eu odiava agir como maluca, eu só queria estar protegida de todos. Ninguém nunca vai saber o motivo de toda essa proteção excessiva, ele fica guardado nos confins do meu subconsciente. Em poucos segundos, passei meu pulso contra a quina afiada da pia metálica, e o líquido grosso e vermelho começou a sair pela linha fraca de pele. Esfreguei meu pulso mais algumas vezes sentindo a dor começar a se fazer presente, e então sorri. O sangue começou a escorrer com mais força, estava ali o meu material para trabalho.

Um fato sobre a minha infância do qual ninguém nunca prestou atenção – como sempre – é que eu me machucava muito. Será que meus pais nunca perceberam que não era normal para uma criança de seis anos se machucar todos os dias nos mesmos horários?! Pelo visto não, e eu amava essa distração dos dois, porque a cada machucado eu tinha mais tempo de mimos e carinhos com os dois. Sinuhe e Alejandro estavam sempre ocupados em seus afazeres, mal tinham tempo para mim, e quando chegavam para almoçar ou acabavam seus horários de serviço, tudo o que queriam fazer era dormir e dormir. Mas e eu? Eu queria atenção, eu queria mostrar meus desenhos e minhas tarefas escolares! Onde estava o tempo pra mim?!

E todas as vezes que eram chamados na escola, em uma semana, porque “A pequena Cabello se machucou no parquinho”. Eles nunca perceberam?! Eu agradeço por isso, pois assim eu tinha ao menos quinze minutos de total atenção voltada pra mim e meus ferimentos premeditados. Quedas da escada, do escorregador, simples tropeções na calçada. Cortes no dedo com a tesourinha sem ponta, lápis enfiados “acidentalmente” no braço, um nariz batido na árvore. E até o extremo de quebrar o braço caindo sem querer de uma árvore, o que me rendeu um mês inteirinho com a mamãe em casa.

A dor pra mim era uma coisa superficial.

- Agora vamos lá, seja uma artista! – Disse passando meu indicador sobre o sangue e pressionando contra a parede. – Que tal um desenho das cavernas? Também era feito com sangue, Camila! Que inteligente!

Ao fim de tudo, estava ali minha obra de arte completa. Três animais da pré-história, sete flechas e cinco homenzinhos palito na parede. Senti meu pulso ficar cada vez mais leve e corri para lavá-lo e finalmente estancá-lo com a fronha do meu travesseiro. Sorri orgulhosa do meu feito, e finalmente parei de ouvir todas as merdas que eles me diziam. Eu estava calma e leve, e dessa vez consegui fechar meus olhos e só enxergar o vazio que todos nós enxergamos. Dormi como não dormia há dias, e descansei como se houvesse trabalhado em uma construção e logo após encontrasse uma cama macia. Sonhei com Sofia e desejei estar com ela ao menos ali, na dimensão sonhadora onde eu era uma boa garota. Minha noite foi normal, mas minha manhã nem tanto, já que acordei com os gritos de um guarda.

- PUTA MERDA! O QUE ESSA GAROTA FEZ?!

SadicistWhere stories live. Discover now