Capítulo 4 - Kiran

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O deslocamento de tropas não parava; havia muito trabalho a ser feito. Despertávamos ainda no escuro, naquela rotina intensamente árdua de se aprontar em segundos e deixar a farda impecável. Depois de um café da manhã reforçado, fomos para o veículo da marinha percorrer as cidades da costa outra vez, entrando em contato direto com a população. Aquele, particularmente, era um serviço que muito me agradava.

Os olhares entristecidos, mas ainda assim fortes, era uma das principais características que os haitianos traziam. Em meio as dificuldades provocadas pelo furacão, ainda encontrar um sorriso no rosto de uma criança era algo de valor imensurável. Ouvi-los falar, depositar seu desespero e confiança em nós, também provocava um sentimento distinto, sem explicação.

Começamos a distribuir as caixas que recebemos na capital, cheia de suprimentos. O acesso ainda um pouco difícil pelos desastres do furacão não nos impossibilitou de dar o melhor de nós naquela travessia por águas perigosas.

"Que bom que vocês chegaram! Estamos passando fome, sede!", a população comemorava com olhos esperançosos de quem tem muita garra pra continuar a lutar.

"Vamos reerguer essa cidade, senhora", arrisquei em haitiano de maneira muito improvisada, mas inteligível visto o abraço que recebi de uma senhora magérrima, cujas costelas podiam ser vistas a distância.

"Com vocês aqui eu sei que vamos, senhor", a mulher comemorou com os olhos marejados me abraçando sem força alguma – suas reservas haviam sido todas gastas naquele desastre natural.

"Muito bem, homens, ao trabalho", Sargento Correia nos incentivava a todo o momento enquanto o trâmite de homens fardados da marinha brasileira trazia um pouco de esperança aquele povo tão sofrido.

Ajudá-los a desempacotar as reservas alimentícias, além de remédios e água, presenciando aquele brilho renascer no olhar de cada um, não tinha preço. Nesses momentos eu me sentia como se tivesse realmente cumprido minha missão, feito minha parte nesse mundo, mas o ponto mais alto pra mim foi quando vislumbrei daquele par de olhos castanhos e ternos já conhecidos de um garotinho que correu entusiasmado em minha direção.

"Barreto!", vibrou a criança ao passo que me abaixei para abraçá-lo com força, sentindo aquela conexão que criamos quando o salvei nas vésperas da chegada do furacão em suas terras. Ao afastar um pouco do rosto para vislumbrá-lo melhor, ainda que magro, mas com um sorrisão no rosto e, o mais importante, vivo, pude enxergar naquele olhar que havia me tornado oficialmente seu herói. "Vejam, vejam, esse foi um dos meus salvadores!", gritava o garoto com todo o entusiasmo enquanto era carregado por mim, levando mais uma caixa cheia de suprimentos.

"Como está?", tentei perguntá-lo na língua nativa. "Vamos levar essas caixas pra população, guerreiro?"

"Mais do que bem, o senhor e seu amigo salvaram minha vida", o sorriso simplório foi de orelha-a-orelha enquanto as pessoas aplaudiam nossa presença.

"Como se chama?", coloquei-o no chão logo depois da caixa, abaixando-me para ficar próximo de sua altura.

"Kiran Alain", respondeu-me alegremente, com seus olhos bem atentos a minha expressão. Retirei meu capacete e coloquei em sua cabeça por alguns minutos e foi o suficiente para que Kiran passeasse correndo por todo o abrigo sentindo a felicidade de ser um mini-soldado.

"Muito bem, Sr.Alain, como sabe o meu nome?", peguei o capacete de volta em seu retorno, abrindo a caixa.

"Na sua roupa", de maneira muito perceptível, o garoto esticou o braço magro em minha direção e eu sorri em resposta.

"O senhor é muito esperto, garoto", dei-lhe outro abraço que foi muito bem retribuído. Pude sentir seu carinho e gratidão nas próprias veias. "Agora, me ajuda aqui, soldado?", sem delongas, o garoto bateu continência como costumávamos fazer e se dispôs a me ajudar a finalizar aquela entrega.

Por Trás da Farda (Romance Gay)Where stories live. Discover now