"Aquilo que nunca fui..."

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Sei que ele não está bem, e sei que não devia sorrir quando o mais provável é ele estar em pedaços por dentro, mas aquelas palavras, ditas com o seu sotaque, com o tom da sua voz: "Acho que te amo" derreteu cada pequena partícula do meu ser e não tive mais remédio, soltei um sorriso, e acho que de certa forma isso o reconfortou. 

"Também acho que te amo, David..." Pude ouvir o seu ritmo cardíaco a diminuir quando ouviu estas palavras. Respirou fundo. Largou-me. "Deixas-me tratar da tua mão?" Ele apenas assentiu. 

Eu abri a torneira na água fria, peguei na sua mão e lavei o sangue, verifiquei se tinha ficado algum pedaço do espelho espetado, e tirei um pequeno fragmento do nó do seu indicador. Passei de novo por água, depois com um algodão limpei com água oxigenada... não que eu perceba alguma coisa de primeiros socorros, mas acho fiz o melhor possível. 

"Obrigado." Agradeceu, quando acabei de fazer tudo aquilo. "Se nãos fosses tu..." Ele não terminou a frase, e creio que eu também não quero saber como ela termina. "Se não fosse por ti..." Suspirou, e mais uma vez deixou a frase a meio, e ainda bem, porque depois de hoje, só Deus sabe o tipo de disparates que podem sair desta boca.

"Não precisas de agradecer." Passei a mão no seu rosto e ele fechou os olhos. Eu saí da casa de banho e ele veio atrás de mim, parece cansado. Deixou-se cair sobre a cama. "Queres alguma coisa?" Perguntei, indo na direção da cozinha. 

"Um cigarro." A sua voz é vazia. 

"David! Tu prometeste! Quando é que voltaste a fumar?" Admito que fiquei indignada, e senti-me de certa forma traída. 

"Não voltei."

"Então porque é que estás a pedir isso?"

"Tu perguntaste se eu queria alguma coisa, eu disse o que eu queria. Tenho o direito de querer, mesmo sem poder ter. Se eu prometi eu vou cumprir... eu nunca faltaria a uma promessa, muito menos se te prometi a ti." Respondeu, calmamente, deitado de costas na cama. 

"Desculpa... entendi errado." Fiquei a sentir-me mal por ter pensado de imediato no pior. 

"E tu?" 

"E eu?" Franzi a testa. "Eu o quê?"

"Voltaste aos velhos hábitos nestas duas semanas?" 

"Não. Eu já não tenho comprimidos."

"E se tivesses?" 

"Não sei." Encolhi os ombros e regressei à cama, porque a verdade é que também me passou a fome. Sentei-me e ele deitou a cabeça no meu colo. 

"Não sabes?" Sorriu, no entanto sei decifrar que foi um sorriso triste. "Ias tomar, se tivesses?" 

"Não sei, talvez sim, ou talvez não. É difícil responder a isso, eu tive momentos de real desespero nessas duas semanas, era possível que tivesse uma recaída, não vou negar." 

Ele levantou-se da cama, foi até à casa de banho e voltou com o frasco dos comprimidos não mão. Achei que ele os tinha mandado fora. Entregou-me o frasco. 

"Guardei-te dois. Força, toma um." Ficou a olhar para mim, à espera que eu fizesse alguma coisa.

"David, eu... não..." As palavras custam a passar na minha garganta. "Eu não... eu não quero."

"Quem estás a tentar enganar?" Sorriu. "Vá, toma um. Tens a minha autorização." 

"Mas... e se eu tomar, o que é que acontece?" Ele sorriu novamente, mas desta vez foi mais um sorriso sarcástico.

"Obrigado. Já tenho a resposta que precisava." Deu um beijo na minha testa. "Agora se não te importas..." Tirou o frasco da minha mão. "Estes dois vão para o esgoto, fazer companhia ao que já lá estão."

Outro copo de amor, por favor (#wattys2016)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora