"Festejar"

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Ele deixa-me com a cabeça às voltas quando diz estas coisas. Eu não sei se isto tudo é verdade. Desde que cheguei aqui sinto que entrei noutro universo paralelo qualquer, e não consigo distinguir a realidade do sonho. É tudo tão... improvável. O simples facto de o ter conhecido, é tão improvável... o facto de ter gostado dele, e o facto de ele me ter escolhido a mim no meio de tantas outras raparigas indefesas do metro. E nós somos tão diferentes, mas tão iguais. Ambos achávamos que estávamos presos, e mostrámos um ao outro que as amarras que nos prendiam não passavam de fumo, como o do seu cigarro, que se enrola e evapora no ar, não se sente, não tem força.

Ele estava preso ao passado e ao peso na consciência. Estava amarrado à culpa, ao sofrimento, à dor, e ele merece tão melhor que isso para a vida dele. Enquanto isso eu estava presa à minha pequena vida insignificante feita de desejos e ideias que não são minhas. Vivia presa às exigências dos meus pais e aos seus dramas. Não passava de uma marioneta a ser trabalhada nas mãos deles, como se não tivesse vontade própria. Ambos merecemos liberdade... embora seja uma liberdade improvável, e embora nos sintamos mais livres quando estamos presos no meio destas quatro paredes e na escuridão... Mesmo embora nos sintamos mais livres quando estamos presos um no outro. 

A porta está trancada, a janela está fechada, no entanto nunca me senti tão livre em toda a minha vida. Acabei de planear a minha fuga daquela prisão a que chamo de família, e tem tudo para dar certo. Eu sei, bem lá no fundo, que ele é o melhor para mim.

Ele puxou o cobertor para cima de nós, deitou-se de costas na cama e eu deitei a minha cabeça no seu peito. Ele começou a brincar com o meu cabelo, que é algo que me deixa sempre mais calma. Aqui consigo ouvir o bater do seu coração e isso é reconfortante. Beijou a minha testa, e eu beijei o seu pescoço. 

"Dorme bem, princesinha má... amanhã temos muito que fazer." 

E a verdade é que adormeci mesmo, e adormeci bem mais rápido que o habitual. As suas mãos sempre a brincar com o meu cabelo trouxeram-me uma paz que não sentia há muito tempo, e o bater do seu coração a ficar cada vez mais pausado fez com que eu caísse num sono profundo, embalado pela sua respiração lenta. 

Ele acordou-me apenas de manhã, com um beijo nos lábios. Haverá melhor forma de despertar?

"Bom dia..." Cumprimentei, com os olhos ainda semicerrados. 

"Bom dia, Bela Adormecida..." Sorriu. "Acabei de testar, e aquela treta dos beijos encantados da Disney é mesmo verdade... acordaste mesmo. Achei que o prédio podia cair e tu nunca acordarias." 

"Estavas a chamar-me há muito tempo?" 

"10 minutos... mas deixa, para a próxima já sei que o que resulta mesmo é o beijo." Piscou-me o olho. "Agora toca a levantar. Hoje temos o dia cheio." 

"Não vais trabalhar?" 

"Tenho sete folgas que nunca tirei, já liguei para o meu patrão, disse que estou doente e que vou usar outra folga, mas que amanhã já vou trabalhar."

"Tens a certeza que não há problema?" 

"Tenho, não te preocupes. Agora veste-te. Vais ter de ir levar-me ao prédio do teu pai e depois vais ter de ir sozinha até ao teu prédio, e depois temos de fazer aquilo tudo que combinamos e temos de encontrar uma escola pública para pedir a transferência... enfim. Não vamos descansar muito hoje." Eu levantei-me da cama, muito a custo, arranjei-me enquanto ele fez café para os dois. "Quando puderes mostra-me as fotos do teu pai." Elevou a voz para que eu o ouvisse na casa de banho. 

Eu saí de lá e fui até à minha mala, que está no chão, à entrada onde ele a deixou ontem. Comecei a remexer nela até que se fez luz. 

"Foda-se... David, esquece o plano." Ele correu até onde eu estava. 

Outro copo de amor, por favor (#wattys2016)Where stories live. Discover now