A tragédia ganha novos ares

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A menina Asial não era a única a preencher a boca dos curiosos naquele início de dia. Feirantes trouxeram pela manhã a notícia do ataque sofrido pelos jovens no grande latifúndio, que vitimara o herdeiro, e alguns capatazes. Sobrevivera apenas o príncipe Leafar, sujeito de sorte, e um servo, que encontrava-se desacordado desde então, balbuciando apenas "a dama dos porcos", talvez se referindo a uma antiga paixão. Dos trabalhadores, ou de seus familiares, pouco se apegavam as línguas ferinas, todas especulavam o que seria do senhor das terras, visto que as demais crias eram moçoilas. Dos fatos muito se especulava, e a história mais contada envolvia um felídeo de proporções descomunais, como fora instruído o único sobrevivente a dizer. Um boato menor, logo desacreditado, contava a história de uma jovem bruxa, que conduzia uma vara de javalis comuns, tomados de uma ira desproporcional até para eles. Também naquela manhã, digladiando-se por atenção, correu um comunicado real pelas redondezas da cidade, de que todas as camponesas se apresentassem ao pátio principal do reino ao fim daquela tarde. As que não se propusessem a ir teriam suas casas reviradas, em busca de motivos que incriminassem a família perante as leis vigentes no reino, e como todos escondiam suas falcatruas debaixo do colchão, alternativa alguma restou que não apressarem-se em direção a colina onde repousava a fortaleza e seu castelo. Ninguém na cidade compreendeu o que se passou naquele fim de tarde, quando as ruas encheram-se de carroças carregando moças desconhecidas, até então prisioneiras do patriarcado rural.

A sua versão do ocorrido não encontrou terreno fértil na corte, onde Leafar não dispunha de credibilidade, e tais palavras só punham as mentes esnobes a condená-lo como um enfeitiçado, corroborando com as expectativas de todos ali, que não viam outro futuro para o rapaz que não aquilo. O príncipe negava, embora já tivesse usado tais substâncias em segredo nas suas desventuras noturnas. Mas ontem se encontrava apenas embriagado, como de costume, e o álcool não mais lhe perturbava tanto o juízo como no início. Ele sabia o que tinha visto, e quem vira, tão formosa e sedutora, envolvendo todos ali com o deslumbre de seus seios nus. A dama o chamava, mesmo a distância, sua mente era refém daquelas imagens e seu corpo movia-se ligeiro tomado de desejo e ansiedade. Restava a ele usar de seus decretos e influência perante a mãe, implorando feito criança para que os pais enviassem seus homens às casas de campo, a procura da tão falada mulher. A rainha logo se indispôs com a futura nora, ainda que não a conhecesse, angustiava a senhora ver o filho sofrendo de amor, ainda que vê-lo deitar-se com todas as damas da cidade não enchesse seu coração de orgulho, ao menos o mantinha entretido até que a escolhida princesa de um reino próximo apresentasse-se a eles. Ela já tinha nome e rosto, Carolina de Amorruà, e encontrava-se, atualmente, aprendendo a ser rainha, esposa e mãe em um colégio no exterior, o mesmo onde, outrora, estudara a progenitora de Leafar. Espero que ela não tenha cedido à tentação de se envolver com os gatunos de Paris, como eu fiz. Ó, como sinto saudades daquele tempo! O rei, atarefado como nunca, passara a manhã em uma sala adjacente ao salão real com seus aliados, vendo ser àquela hora precisa para adquirir as terras do latifundiário, tomado de desgraça e alguns empréstimos ainda pendentes. O velho rei sentia-se ameaçado pelo poder daqueles ricos fazendeiros, cujas terras alcançavam um quarto do território de todo o reino. Logo iriam depô-lo, como já vinha ocorrendo em outros lugares e, com ares democráticos, eleger-se-iam governantes daquelas terras, as mesmas passadas de geração a geração, de um rei ao outro. As terras de seu santo pai, jamais!

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