Constatação

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Como a mente é perversa e nos prega peças...

As amarras que prendiam o raquítico corpo do velho a maca não foram capazes, no entanto, de impedir que suas verdades viessem à tona. E os ossos, já desgarrados de todo e qualquer músculo que neles se amparavam, foram vencendo a resistência imposta pela fina pele, e diante de mim a calvaria foi se revelando, e a pele se expandindo o máximo possível, até não mais ser capaz de conter aquela violência e rasgar-se em inúmeras fendas, por onde embrenhavam-se os ossos, dilacerando o restante da pele. E eu horrorizada aos pés daquela encenação. Os ossos caíram sobre mim, ainda ensanguentados, com pedaços de músculo, cartilagem e vasos dependurados, e os restos da pele continuaram amarrados à maca. Contive meu grito o máximo possível, tinha nojo do meu corpo, queria correr dali para uma imensa banheira, nela mergulhar e sair outra pessoa, em outra situação, livre do passado, das consequências que carregava comigo. Fechei os olhos forte, e impus aos meus músculos toda força necessária para irromper a carcaça do velho e correr pelo corredor, empurrando as pessoas esguias que nele se encontravam. Corria em câmera lenta, com a visão turva, como se a miopia tivesse tomado meus olhos instantaneamente. Mas eu sabia o caminho e o percorri mesmo assim, nunca olhando para trás, temendo o que me espreitava.

No pátio todas encontravam-se deitadas, nuas, com faces de regozijo, alcançando um orgasmo sem fim e nunca experimentado. Até mesmo Regina e Mama Sampaio despiram-se naquele show. Sobre elas corpos masculinos, todos com a mesma cor de pele, o mesmo porte, e frequência de penetrações, estavam em sintonia, coreografados, sinto uma mão pousar levemente em meu ombro, olho receosa, não se trata de um demônio ou outra criatura mítica, atrás de mim está Rafael, mais lindo do que nunca, com um sorriso me conduz para as esferas do meu coração, quão brega isso possa soar, sinto o amor que por ele nutri voltar à tona, livre de ressentimentos, sem cicatrizes, puro como no início. E então volto minha atenção para o pátio, e todos os corpos masculinos estão a me encarar, todos representações de Rafael, sou levada para o meio deles, e meu corpo deita-se sobre o cimento áspero, frio, e aquilo torna-se o ninho mais aconchegante para se amar. Rafael não me beija, ou estimula meus mamilos, sobrepõem-se ao meu corpo e me penetra, e já estou em congruência com as demais presas, fecho meus olhos e deixo-me levar pelo gozo.

Nem os sonhos nos permitem esquecer. Olho para o lado, e a propaganda mais horrenda transcorre-se ali, sobre os corpos das mulheres pairam enormes escorpiões, de dimensões humanas, assumiram o posto que pertencia a Rafael, sua cauda e agulhão a postos aproximam-se e afastam-se das mulheres, em um pêndulo sádico e cruel. Sou levada a constatar que um Rafael também deita-se sobre mim, viro meus olhos e lá está ele, ainda humano, sem o estigma da doença, com sua careta de prazer, talvez entre nós o escorpião fosse eu. E o gozo vem fácil, e os corpos ferroados agora perdem a sintonia, caem em esquecimento e desvalorizam-se, os escorpiões tomam suas formas humanas e deixam as mulheres largadas, com as costas escoriadas e sangrentas. Até mesmo o meu Rafael ali não mais se encontra, meu coração se retrai em dor e saudades, nos resta o acolhimento, e então não mais estamos nuas, e sim em vestes de festa, maquiadas e com cabelo feito, elogiando umas as outras.

Acordo molhada. 

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