O que dela restou

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A moça em sua casa encontrou o afrontamento, o desprezo nos olhos de quem antes a amava, o que haveria de fazer uma donzela tão tarde na rua? Escusa alguma decolou, e a desconfiança naquela casa se instalou, com sua mãe observando suas roupas íntimas a procura de traços de uma menstruação, nunca antes tão demorada e desejada. E a barriga, traidora, poderia alocar naquele instante a desonra nítida da família, alimentando-se da vergonha de uma filha enfeitiçada. Sim, a pequena fora enfeitiçada por aquele maldito príncipe. Mas isto não retirava dela sua culpa. E a porta da rua nunca antes mostrou-se tão convidativa...

Asial voltou aos estudos, embora acreditasse ver nos olhos dos enfermos um julgamento, como se todos soubessem da sua condição. Seu corpo murcharia dali em diante. Por dias foi maltratada, e o que antes não possuía grandes significados, agora era acolhido como indiretas para sua impureza, e em seu peito frágil se proliferava, aumentando sua revolta própria, amargurando aquela alma juvenil e previamente sonhadora. O que fizeram com sua liberdade? Agora acatava a tudo, com meio sorriso, não mais se permitia sonhar grande, contentando-se com o presente e por suas mãos alcançável. Entregava-se a materialização como forma de consolo, comprava vestidos novos na esperança das cores espalhafatosas desviarem a atenção de seu semblante preocupado. Estava envolta de maleficência. E o príncipe continuava em suas tavernas, provando de novas moças, arrastando-as para aquele imenso lamaçal, da qual sujavam-se e dele não podiam se livrar. Era ele um colecionador.

- Não por muito tempo, se depender de mim.

E seguiu de volta para a floresta, guiada pelos motivos certos. Lá nada encontrou, apenas mato e insetos. Gritou convicta para sua Mãe, estava perante de sua obra com o coração retraído, e com a mente coberta de razão. Impediria que novas mulheres fossem arrancadas de seu berço natural. Sim, seria agente transformador naquela história. E o que soava era a simples vingança contra o príncipe. Todos a escutaram por aqueles infindáveis minutos, até que desistiu, voltava na esperança de dela terem se compadecido, esperava um sussurrar em seu ouvido, mas assim que os limites da floresta tornavam-se visíveis, percebeu que nada fariam por ela. Estava sozinha, como fizera-se no momento de sua decisão naquela fatídica noite. Naquele momento sentia-se orgulhosa, dona de seu corpo, de suas vontades, com o futuro aos seus pés, assim como os homens. E então um pio estridente ressoou na floresta, um pio de dor, encontrava-se distante demais para fazê-la retornar. Mas a Mãe nunca abandonava uma filha, e com ela seguiu para o Reino.

Sua jornada de aprendizado por longos meses fez-se necessária, e em cada novo dia se enfraquecia, ganhava crostas, criando uma carcaça que a protegesse dos olhares maldosos dos comerciantes, dos de vergonha de seus familiares, e os subjugadores de seu mentor. Passava suas noites desenvolvendo o dom da cura, a ponto de preferirem-na ao curandeiro, o que causou máculas naquele ego inflado, em breve não mais encontraria espaço ali, tendo de migrar para uma nova casa de atendimento, e assim fez, aproximando-se do tão sonhado castelo de outrora, realizava seus sonhos de menina, embora nunca estivesse completa. A ânsia nela aflorou, tornando-a competitiva e vaidosa, fria e belamente paramentada. Não mais andava nas ruas com o rosto abaixado, a muito custo conquistara o direito de desfilar pelas vielas, desfilar o melhor vestido, a melhor maquiagem, os sapatos da moda, trazidos de terras longínquas. E ainda encontrava-se infeliz, mesmo nos braços de outros homens, estes poderosos e arrogantes, não um príncipe, mas merecedores de seu status. Moldara-se tão fielmente a sociedade machista, que não mais se parecia com as filhas da Rainha. Mas foi preciso apenas um encontro para por fim em sua autoestima.

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