De volta outra vez

79 5 1
                                    

Depois de todo o ocorrido, me refugiar no passado é uma ideia tão atraente, como se daquele tempo apenas memórias boas tivessem restado, e o dia a dia tivesse perdido seu valor, assim como os sofrimentos juvenis, as brigas com meus pais, os desentendimentos com meus amigos. Tudo se esvaneceu, e o passado tornou-se florido e fantasioso, fazendo com que eu desejasse retornar a ele, iludida com a manipulação de minha mente. Mas vamos lá, Rafael, meu querido, onde está você a essa hora?

Voltando aquele show que lhes contei um tempo atrás... Túnel do tempo no ar, imagem oscilando, prim plim prim, efeito elipse ativado, e lá vamos nós!

- Vocês acham que ele não vem?

- Claro que vem, sua boba. Você acha mesmo que ele e os amigos deles iam perder esse show? Está todo mundo aqui, eles devem estar num esquenta essas horas. Vão chegar aqui altos já.

Minha amiga Maria estava certa, e ver um dos amigos de Rafael me trouxe uma satisfação enorme, meus olhos rastreavam o local, embora a multidão não ajudasse a identificar muita coisa. O pessoal do colégio não mais se encontrava unido, tendo os grupinhos se dispersado, se quisesse vê-lo precisaria andar a esmo pela arena. E convencer minha amigas não foi difícil, saímos sem rumo, nos afastando da frente do palco, ali só se encontravam as fãs fervorosas, e pouca pegação. E então o vi, depois de muitas cotoveladas e empurrões, estava ele em sua roda de amigos, com algumas meninas conhecidas e outras não, algumas belíssimas e outras não. O que as traziam para perto deles? Talvez um pouco mais de atitude. Pela forma como riam e se expressavam corporalmente ficou claro que bêbados já estavam, e a garrafa que passavam de boca em boca possivelmente era vodca. Até as meninas bebiam, e eles as incentivando. E eu lá, sóbria, lúcida o bastante para me manter a distancia, recatada e insossa. Precisaria eu de um pouco de álcool e litros de charme e ousadia? Sim, ou um esbarrão acidental como acontece nos filmes.

Fiquei rodeando o grupo, a boa distancia para ser, ocasionalmente, notada, e não parecer excessivamente obcecada. E gurias da minha sala se juntavam a ele, e até as mais novas. E eu ali, com o coração a mil, esperançosa, e com minhas amigas apagadas ao lado. Me convenci de que o problema estava em nós, precisávamos deixar aquela aura de corretas e menininhas de lado. Dançar até o chão, encher a cara, beijar vários, o que nos faria atraentes para homens como o Rafael? Ou seriam minhas roupas? Ou a maquiagem muito básica? Talvez o cabelo? Ai, sempre ele, amigo e vilão, em horas adversas. E então aconteceu, Rafael posicionou-se ao lado de uma loira, mais alta do que eu, com seios fartos, e pouca bunda, embora o shortinho realçasse o que tinha. Fiquei irritada e incrédula, como se ele me devesse satisfações e fidelidade ao amor nutrido há tantos meses. Evitava olhar, embora me pegasse os encarando, Rafael foi rápido, logo estava aos beijos com ela, a mão entre a cintura e os glúteos, subindo e descendo, e ela elevando-se para beijá-lo, deixando ele bagunçar seu cabelo de escova. Só queria sair dali, pegar qualquer um, queria ser notada, vista por ele com outro, mostrar que eu também podia, que os homens me desejavam, que eu era alguma coisa. Arrastei minhas amigas para perto do palco, logo mais os cantores chegariam, e o atraso deixaria de ser vaiado, e os beijos diminuiriam, assim como a caça. Tantas expectativas para aquela maldita noite, que ódio, voltei para vê-los, não mais estavam juntos, Rafael havia sumido com outro amigo, e a loira cochichava com a amiga, ansiosa pela volta do amado. Mas ele te deixou na mão, não foi, querida?

Ao invés disto, correu a noite toda, beijou novas bocas, ludibriou outras mulheres, aumentou seus números e sua autoestima, deixando as bocas beijadas cheias de incertezas. Raras foram as que compreenderam o real motivo daquilo, um simples beijo de festa, sem significados ou pretensões, beijaram e continuaram dançando, ou flertando com outros caras, não perderam suas noites procurando o príncipe encantado, ou indo falar com ele na tentativa de conseguir um número de celular, ou novos amassos e um pedido de encontro para o dia seguinte. Eu o vigiei, não cedi à bebida, mas dancei loucamente, estava ali para me divertir, e não deixaria que aquele moleque estragasse minha noite, meu primeiro show com as pessoas que eu mais gostava. Cantei as músicas com coração ferido, como mandava o requisito, pulei e gritei assim que entraram no palco, ergui a mão quando perguntaram se tinha muita mulher apaixonada ali naquela noite, e quantas estavam solteiras. Sim, nós éramos a maioria, e poderíamos nos sentir acolhidas se a vaidade não nos afastasse. O show acabou e Rafael pouco viu dele, perdeu seu tempo invadindo o camarote, ou trocando pulseirinha, beijando desconhecidas, ou tomando conta de algum amigo que vomitava seus pés. Mas eu estive ali, e carrego esta lembrança, ainda que seu gosto seja agridoce, nem Rafael, tampouco as amigas se fazem presentes hoje em dia. Onde foi que tudo mudou? 

PredadoraWhere stories live. Discover now