A surdez dos tempos

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Ao encarar sua progenitora, Asial desligou-se momentaneamente de sua civilidade, tornando a natureza simples projeção dela própria, um só organismo, regido pela mesma força, e neste enlaço sentiu toda a dor causada pela destruição humana, o avanço das grandes fazendas, a derrubada das árvores, os incêndios que empobreciam o solo e matavam os pequenos animais, também sentiu-se encurralada pelo fogo, na mira da arma, a pólvora queimando sua pele, seu pelo sendo arrancado com uma faca, sua voz silenciada pelo medo, procurando abrigo, mas lugar nenhum deixavam-nos a salvo da ganancia humana. Nem mesmo o fundo do solo ou os altos céus. Asial curvava-se diante de tanto horror, incapaz de encarar sua Mãe, mas esta estava em todo lugar, nas formas de vida e naquelas que há muito não viviam, e os galhos e folhas largados no chão tornaram-se o melhor dos colchões, nem mesmo os insetos que nele se encontravam a incomodavam, estavam em harmonia, em um mesmo tom. Mas a humanidade nela incutida sobrevaleceu, tirando-a daquele transe, e o solo não mais era confortável, e os mosquitos sugavam seu sangue e causavam prurido, assim como as folhas das arvores, e os espinhos dos galhos. Estava suja, descabelada, em nada aparentava ser a lady de outrora. Imagina se me encontram nesse estado? Me condenam como bruxa! E a maior bruxaria era a que a tirava dos braços da sua Rainha.

- Por favor, Senhora, eu respeito sua posição e importância. Mas me ajude a salvar o homem que amo!

- Mas este não é o amor certo para você, minha filha.

- Como sabe? Eu o amo a tanto tempo, e este sentimento me causa uma enorme dor, e alegria também, só de pensar que talvez eu o encontre na rua já fico satisfeita. Oh, e quantas outras gostariam de estar no meu lugar uma hora dessas. Salve-o minha Mãe.

A Rainha escutou a súplica de sua cria, compreendia o estado enublado em que a pequena se encontrava, afoita para se encaixar no mundo dos homens, ser mais uma engrenagem a levar adiante aquela loucura. Estava Asial enfeitiçada pela paixão, e como desconhecia os verdadeiros sentimentos, acreditava ser aquilo que sentia a emoção mais forte daquele mundo, mas se perdia entre o que diziam ser o verdadeiro amor. A rainha esvaneceu-se no ar, adentrando os orifícios do rapaz, trazendo-o a vida, ainda mais forte e belo, como estava desgostosa por usar de seus talentos em criatura tão abominável. Dispersou-se e ali permaneceu, entre os olhos da coruja e do esquilo, nas antenas das formigas e das mariposas, e no ouvido dos lobos, entre as raízes e galhos, e nos vermes que na terra se escondiam.

- Ó, eu nem acredito. Você voltou a vida, Leafar.

- Ora, ora, mas quem é você, mocinha? E se me perdoa a pergunta, por que estou eu de peito nu aqui na floresta?

- Você caiu do seu cavalo. E por acaso eu aqui por perto me encontrava e escutei seu grito, e vim para cá.

- Sei... Já me aconteceu antes, bem diz papai, esta boemia ainda acaba por me levar, hora ou outra. Mas me diga, o que fazia sozinha na floresta uma hora dessas?

- Eu, bem... Sou aprendiz de curandeira, estava por aqui buscando novas plantas para serem utilizadas em nossos estudos. E você sabe como a floresta é traiçoeira, quando vi já estava tarde.

- Mas quem diria, uma curandeira, que sorte a minha. Acredito que me conheça, certo?

- É, sim. Acho que não tem como não conhecer o senhor.

E dela ele roubou um beijo, como agradecimento, ou simplesmente por estarem em um lugar favorável e ele não dispensar um corpo feminino.

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