V

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Bela desceu as escadas e caminhou até a sala das refeições. Ela usava o vestido transparente e tinha os cabelos presos em um coque. A mesa estava posta com várias comidas e ela se viu imersa em um misto de medo e ansiedade. A fera iria abusar dela? Iria maltratá-la? Iria tentar matá-la? O que o destino a reservava naquela noite?

De repente, na sala de refeições, Bela percebeu que não estava sozinha. Olhou para um canto escuro na parede e notou que havia alguém ali. Era uma figura grande e assustadora, coberta pela escuridão, respirando de forma audível. Bela estremeceu e a curiosidade para conhecer a fera se esvaiu. Ela queria fugir. Foi vencida pelo medo. A criatura colocou uma de suas patas para fora das sombras e Bela estremeceu mais ainda. Não estava preparada para aquilo.

Após o que pareceu ser uma pausa dramática, a criatura colocou todo o corpo para fora das sombras e Bela viu, pela primeira vez, na luz bruxuleante de velas da sala de refeições, a fera. Ela emitiu um grito agudo e horrorizado, estava totalmente assombrada com a visão da fera. Era uma criatura horripilante, pior do que ela imaginou; um monstro peludo e animalesco, tenebroso, quase o dobro do seu tamanho e exalando um leve cheiro de enxofre. Bela desmaiou de medo.

Quando a jovem abriu os olhos encontrou um cômodo destruído. A mesa onde as refeições estavam foi partida ao meio e havia comida espalhada para todo lado. As cadeiras foram feitas em pedacinhos. Tinha louça quebrada por toda parte. Bela verificou se estava inteira e constatou que sim. Não havia um centímetro do tecido do vestido nem da sua pele rasgado. O que havia acontecido depois que ela desmaiou? Talvez a fera tivesse enlouquecido. Bela avistou um envelope sob a mesa quebrada e nele estava escrito, em uma letra horrenda, "Para Bela".

Bela rasgou o envelope e viu um pequeno bilhete com a caligrafia pior ainda. Demorou alguns minutos para decifrar as palavras. "Desculpe por lhe assustar. Não irá se repetir. Pode ir embora quando quiser. Está livre." Bela teve uma crise de risos. Era alguma piada? Quem escreveu aquilo? A fera? Ela não sabia o que houve com as outras moças que ali pisaram, mas imaginava que aconteceu o pior.

No entanto, as histórias que Bela ouviu de alguns prisioneiros a permitiam ser obediente a um monstro que ela teve o desprazer de conhecer. Bela sabia que a fera era exigente, sem escrúpulos e muito arrogante; era um ser agressivo, temperamental e impulsivo, cruel. Bela era uma prisioneira. Aquele bilhete? Com certeza era uma piada. Bela correu para seu quarto e se trancou nele, onde chorou a noite quase toda. Queria acreditar que podia ir embora, mas sabia que nunca ficaria livre.

No dia seguinte, Bela acordou e, ainda vestida em sua camisola, foi até o jardim. Ela já havia ido ali diversas vezes desde que chegara ao castelo, mas naquele dia em especial se demorou a observar as rosas. Elas eram perfeitas, de um vermelho vivo e pulsante. Fora por causa delas que seu pai se envolveu naquela confusão. E ali estava ela pagando por exigir dele uma rosa. De fato, as rosas eram as mais lindas que já viu em sua vida. Não lhe admirava que o pai desejasse dar-lhe uma delas.

Enfurecida pelo que aconteceu à sua família, frustrada com aquela situação de prisão confusa, triste com a morte da mãe e revoltada com o coronel que manchou a sua reputação, Bela agarrou ao talo de algumas rosas, sem se importar com os seus espinhos, e tentou arrancá-las. De repente, ouviu uma voz grave atrás de si.

— Não faça isso com as minhas rosas.

Bela não conseguiu olhar para trás, mas pela gravidade da voz só podia ser a fera. Soltou o caule das rosas, apreensiva. Ver a fera sob a luz de velas durante a noite foi aterrorizante e ela desmaiou. Talvez morresse literalmente de medo se a visse sob a luz do sol, na claridade diurna. Bela engoliu em seco.

— Por quê? Irei ser punida? – ela perguntou desafiadora, ainda sem encarar a fera. Logo em seguida se arrependeu, pois a fera rosnou.

— A senhorita deseja mesmo descontar suas emoções nestas pobres rosas? O que elas lhe fizeram?

— Sim, eu desejo! – Bela estava com muita raiva e não se importava se era a própria fera ali discutindo com ela – Se não fosse por essas rosas, meu pai não teria se tornado seu prisioneiro e eu não teria vindo em seu lugar nem estaria nesse castelo onde habita um monstro terrível!

— Assim a senhorita me ofende.

— Eu já ouvi coisas horríveis a seu respeito e sei que se alguém for punido por causa disso irá apenas confirmar tudo o que eu acredito.

— Todos cometem erros, Srta. Bela. – a fera pareceu entristecida – Estou pagando pelos meus, mas não pagarei para sempre.

— Então vá pagar pelos seus erros longe de mim! – a Bela continuava enfurecida e audaciosa.

— Acredito que tenha lido o bilhete que lhe deixei noite passada dizendo que está livre. Se quiser partir agora, meu mordomo irá deixá-la em sua casa.

— Por que uma fera faria isso? É um truque. Eu não sei o que houve com as outras moças, mas não terei o mesmo destino que elas.

A fera olhou para as rosas e, por um momento, se admirou da coragem de Bela. Nunca tinha visto nenhuma mulher, em sua condição de fera, ser tão destemida. Seu rosto sorriu. Ele não conseguia sorrir a muitos anos. Depois a fera fitou o castelo a alguns metros de distância. Tantas crueldades cometidas naquele lugar, antes mesmo de ele ser uma fera. Estava arrependido, mas não poderia mudar o passado jamais nem mesmo o futuro, que seguiria uma única linha, a da sua maldição.

— Eu decidi aceitar o meu destino. – disse a fera – Mas agora te dou a escolha de ir embora e criar um novo futuro para si. Aqui não é o seu lugar.

Bela se reconheceu nas palavras da fera. A primeira frase que disse era algo que ela repetia como um mantra. Tinha aceitado o seu destino quando foi desonrada pelo Coronel Lorde Crawford. Tinha aceitado o seu destino quando foi para aquele castelo.

— O que aceitou no seu destino? – Bela perguntou curiosa, mas ainda chateada.

— Tudo. Principalmente que ele não tem salvação.

Os dois permaneceram em silêncio por alguns minutos. Bela não olhava para a fera, mas quando olhava de soslaio via a sua sombra se projetar. Era imensa. Até a sombra da fera transmitia medo.

— Vá embora, Bela. Eu sei que me acha horrendo e...

— Como chegou a essa conclusão? – Bela o interrompeu, falando ironicamente – Foi através do meu grito, do meu olhar ou do meu desmaio?

— A senhorita é uma moça muito atrevida. – a fera rosnou.

— E o senhor é um monstro muito indecente.

— Indecente? Eu sou indecente? – a fera gargalhou, mas parecia mais um rugido engasgado. Bela sentiu vontade de rir.

— Se engasgou com os pelos? – riu baixinho.

— Como ousa me chamar de indecente e debochar de mim?

— Como ousa me obrigar a usar vestes vulgares? Nunca tinha visto uma mulher expor tanto o corpo até usar uma das roupas que me dá.

— Deveria confessar que lhe caem muito bem. – e a voz estrondosa da fera pareceu mais suave. Bela sentiu um arrepio percorrer o corpo.

— Deixe-me em paz.

— Está livre, Srta. Bela. Estará em paz quando quiser.

A fera deixou a Bela no jardim, imersa em reflexões. A conversa que teve com o monstro a fez pensar que talvez ele não fosse tão ruim. Havia pessoas que o defendiam, não havia? Talvez nem sempre ele tivesse sido um monstro. E, por um momento, naquele diálogo, ora afrontoso, ora tão honesto, pareceu que a fera tentou lhe contar seus segredos. Também houve vontade de rir e compartilhar. E até um flerte que Bela julgava ter sentido. Não foi insuportável. Talvez por debaixo daquela criatura horripilante existisse um bom coração.

Bela se sentiu mal por estar julgando a criatura. Ela mesma era julgada há anos por ter tomado uma decisão errada e ter se deitado com um homem sem ser casada. Ela pagava caro por ter agido de forma inadequada. Talvez esse fosse o caso da fera: ter tomado uma decisão errada. Ele disse que estava pagando pelos seus erros. Que erros seriam estes? Bela estava decidida a ficar no castelo e a encarar a criatura. Iria descobrir seus segredos e até ajudá-la, se pudesse. Bela era uma mulher, não um rato. Aquele navio não seria abandonado por sua aparência.

A Bela e A FeraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora