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Fui do cemitério direto para casa. Não queria olhar mais ninguém naquele momento. Estava cansada dos olhares de pena que todos destinavam a mim.
Ao chegar em casa, fui para o quarto da minha mãe, para separar as coisas dela enquanto eu ainda estava sofrendo, para não ter que sofrer ainda mais depois. Sentei em sua cama e olhei a fotografia de nós duas em seu criado-mudo. Nós tiramos aquela foto quando ela voltou da reabilitação e minha mãe aparentava estar feliz.
Coloquei o porta-retratos em cima da cama e abri sua primeira gaveta. Lá haviam diversas caixas de remédios, e o terço que o senhor Alberto me deu. Quando eu estava me sentindo melhor e minha mãe estava piorando, dei a ela o terço.
O coloquei junto com o porta-retratos e fui até seu guarda-roupas. Separei apenas algumas peças de roupas que me lembrariam muito a minha mãe, e o restante separei para doação. Por mais difícil que fosse doar tudo o que era de minha mãe, eu sabia que era o certo a se fazer para tentar superar a perda.
Peguei diversas caixas de papelão, que minha mãe guardava para uma "possível" mudança para uma casa maior, e comecei a colocar suas coisas dentro delas. Em pouco tempo tudo estava encaixotado e pronto para doação.
Eu não conseguia mais chorar. Eu sabia que minha mãe estava procurando seu tão esperado descanso e eu estava rezando para que ela o encontrasse.
Andei por toda a casa, pegando todas as coisas que eram de minha mãe e as jogando nas caixas sem ao menos pensar. Fiz uma caixa de lembranças e dentro coloquei nossa foto, o terço, sua camiseta favorita, sua carteira e seu livro preferido.
Ao chegar com a caixa na sala, Henrique entrou em casa sem ao menos pedir licença. Ele me viu rodeada por todas aquelas caixas e seu semblante mudou. Ele me olhou com pesar e pude ver pena em seus olhos.
– Não sinta pena de mim, Henrique! As pessoas partirem já se tornou algo normal em minha vida.
– Não fala assim, Amora.
– O que quer que eu diga? Que estou feliz com tudo o que aconteceu? Que estou satisfeita com o rumo que minha vida levou?
– Não é isso...
– Sinto como se minha vida estivesse escorrendo entre meus dedos. É como se eu não tivesse controle de nada da minha vida. Ela me nocauteou tantas vezes que não sei se sou capaz de me recompor mais uma vez – lamentei.
– Amora, você é a mulher mais forte que eu já conheci.
– Não importa...
– Importa pra mim! Mesmo sabendo pouco de você, sempre tive orgulho de você.
– Certo! Por isso foi embora e sumiu? Por orgulho de mim?
– Você sabe porque eu fui embora.
– Eu sei, mas não sei o que está fazendo aqui, se é comprometido.
– Eu achei que você estava feliz!
– Como você achou algo sem ao menos me perguntar? Porque você não me perguntou o que eu sentia, o que eu estava passando e o que eu queria? Você decidiu por nós dois, Henrique.
– Quando eu a procurei pela segunda vez, vi vocês dois sentados no portão da sua casa e vocês riam tanto juntos que achei que aquilo era o certo pra você! Naquele momento, decidi abrir mão de você. Abri mão do meu sentimento, pela sua felicidade.
– É aí que você se engana. Você abriu mão da minha felicidade também.
Henrique ficou em silêncio por um tempo até que falou baixo:
– Eu achei que estava fazendo a coisa certa, Amora.
Olhei para ele, cansada.
– Eu rezei tanto, te procurei tanto e você evaporou do mundo, Henrique. Você não sabe nada do que passei. Não sabe que fiquei anos à sua procura. Não sabe o que senti.
– Mas você seguiu em frente.
– Eu tentei. De verdade eu tentei, mas meu coração traidor não me deixou. Todos que saí eu comparei com você e ninguém mais era o suficiente pra mim. Você estragou minha vida com as suas decisões egoístas!
Henrique me olhou com lágrimas nos olhos, mas aquilo não me afetou. Eu estava tão magoada e amargurada que queria despejar anos de insatisfação em Henrique. Eu queria que ele soubesse tudo o que passei sem ele.
– O que você está fazendo aqui, Henrique? – Coloquei as mãos na cintura, exausta.
– Eu já te falei! Eu vim te ver e...
– Bobagem! O que você está realmente fazendo aqui? Cadê sua esposa que não está aqui com você? O que você está fazendo aqui sem ela?
– Ela não é minha esposa e, sim, namorada. Vim te ver porque eu tive vontade e porque eu queria estar com você nesse momento difícil.
– Você a ama?
Henrique retorceu o nariz para a minha pergunta e permaneci em silêncio, aguardando a resposta.
– Sim – ele disse, por fim.
Assenti e senti um peso sair de minhas costas. Mesmo eu ainda amando Henrique, saber que ele encontrou alguém que o faça feliz me deixou aliviada. Acho que, quando se ama alguém, é assim que nos sentimos. Feliz pela pessoa, mesmo que ela não esteja com você.
– Fico feliz por você.
– Eu te amo também, Amora!
– Eu sei.
Henrique me olhou triste. Era possível ver a confusão em sua mente.
– Há quanto tempo vocês estão juntos? – Perguntei.
– Dois anos.
– Vocês vão se casar?
Não sei porque eu estava perguntando aquelas coisas. Talvez eu precisasse provar a mim mesma que Henrique estava realmente bem. Ou eu era masoquista e precisava sofrer mais.
– Ela quer.
– E você?
– Não tenho certeza.
Sorri para Henrique, que continuou me olhando com tristeza.
– Acho que você deveria voltar para a sua namorada agora.
– Não faz assim, Amora.
– Ela sabe que você está aqui?
– Sim.
– Ela sabe quem eu sou?
Henrique ficou em silêncio.
Eu me afastei e continuei a guardar algumas coisas nas caixas. Henrique me olhava sem dizer nada.
Fui para a cozinha e ele veio atrás de mim.
– Amora...
– O que você quer, Henrique? O que você quer de mim? Você está praticamente noivo, encontrou alguém que te ama como ninguém te amou antes, certo?! O que você ainda está fazendo aqui?
– Eu falei aquilo da boca pra fora! Não sei o que fazer! Eu não sei, Amora! Eu achei que nunca mais ia te ver. Achei que você finalmente estava feliz! Achei que você havia me esquecido! Nada disso está fácil pra mim também!
Fiquei olhando Henrique e me sentei na cadeira da cozinha.
– Se não está fácil pra você, imagine pra mim – balancei meus braços, mostrando o ambiente ao redor.
Henrique abaixou a cabeça e suspirou.
– Precisa de ajuda?
– Eu preciso ficar sozinha um pouco, Henrique. Você deve voltar para a sua namorada e me deixar em paz. Isso não é justo com nenhum de nós três. 
Henrique suspirou e, depois de um tempo, concordou.
– Tá bom. Vou te dar o espaço que precisa – disse e saiu da cozinha em seguida.
Eu queria perguntar para onde ele ia. Queria me jogar aos seus pés, implorando que ele não me deixasse mais uma vez, mas não tive coragem de fazer nada disso.
Henrique era um homem comprometido e não seria eu a causadora do término dele.

Delicioso (Des)Conhecido (DEGUSTAÇÃO)Tahanan ng mga kuwento. Tumuklas ngayon