- Noite vazia -

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Coloquei o capacete molhado sobre a cabeça, liguei minha fiel companheira Harley Davidson e segui estrada afora. Uma hora depois, cheguei no condomínio habitacional em um bairro de periferia. Apesar da fama ruim da vizinhança, o ambiente é calmo, todo mundo se conhece e sabe se respeitar. Deixo a moto no estacionamento com as rodas travadas por correntes. Antes de entrar, cumprimento o vigia e, como sempre, recuso o cigarro.

Checo as mensagens do celular enquanto subo as escadas. Não há nada importante, apenas recados da operadora e do meu chefe cobrando as fotos que lhe prometi.

- Lar doce lar - afirmo diante do apartamento 61 do bloco C, minha casa.

Abro a porta, mas hesito entrar ao sentir a baforada de vapor quente do ambiente. Ponho o capacete no canto da parede e corro para abrir as janelas e vitrôs. Aplico um 'bom ar' para disfarçar o cheiro de mofo. Em seguida tiro a blusa molhada, os sapatos encharcados e vou tomar banho.

Acomodado, finalizo as fotos no notebook e as envio para meu chefe enquanto como macarrão instantâneo, meu prato favorito - para não dizer que é a única opção no cardápio.

- O chefe vai adorar - rio diante das fotografias exclusivas do acidente com o famoso.

Ligo a Tevê sabendo qual a programação.

- A morte do cantor sertanejo da dupla Rafael e Miguel, chocou o país. O acidente deixa um alerta para os motoristas de plantão. Não faça como 'Miguel voz de ouro', se beber não dirija - dizia a telejornalista durante programa ao vivo.

Aborrecido e entediado, desligo a TV. Ser um jornalista reconhecido. É esse meu sonho, no entanto estou longe disso. O máximo que consegui foi um emprego no "100%Notícia", o jornal local onde sou assistente do fotógrafo.

Era 22 horas da noite de sexta-feira quando fui me deitar. Não estava cansado, mas não havia nada para fazer, exceto no dia seguinte que teria muito trabalho pela frente. Redação de jornal vira um caos quando tem alguma notícia envolvendo famosos. Peguei o celular, entrei no WhatsApp, abri no chat de uma garota. Luciana ou Lucy, como prefiro chamar.

- Oi, tudo bem? Vai fazer o que amanhã a noite? - cochicho enquanto escrevo a mensagem. No entanto, desisto e apago a conversa.

Larguei o celular no criado-mudo e, assim que reclinei a cabeça no travesseiro, ele tocou. Rapidamente peguei o aparelho. Para meu desanimo não era Lucy. Do outro lado da linha Pedro aguardava que eu atendesse.

- Fala Pedro.

- Eai TeD, vamos na casa do Nick? Ele vai fazer uma social, eu estou indo pra lá!

- Sei não cara, estou ocupado.

Alias meu nome não é TeD, é só um apelido entre amigos, me chamo Thiago Silva Dantas.

- Ah é? Então faz o que? Para de enrolar. É o aniversário do Nick.

- É, eu sei, ele me convidou. Cara amanhã eu trabalho.

Nunca gostei de trabalhar fim de semana, mas gostava menos ainda de festas, então usei o serviço como desculpa, mesmo assim...

- Vou passar ai para te pegar e de manhã te levo até o trampo - afirmou Pedro antes de encerrar a ligação.

A insistência foi tanta que cedi e logo estava no sítio da família Freitas com meus amigos comemorando o aniversário do Nick.

- Feliz aniversário. - disse seco ao cumprimentar Nicolas. Não é como se eu o detestasse, do contrário, é meu melhor amigo, porém sou pouco comunicativo.

Pedro cumprimenta Nicolas abraçando-o, em seguida lhe entrega o presente: uma camisa do Slipknot que ele havia ganho do pai, como ficou curta, o malandro aproveitou a deixa e deu de presente

A festa ocorria diferente do que pensei, era apenas uma comemoração entre conhecidos. Estávamos em cinco na mesa, comíamos churrasco e jogávamos conversa fora assim como as demais pessoas no ambiente. Do grupo, só eu bebia refrigerante e logo me questionaram.

- Você não toma cerveja? - perguntou Clarice, a namorada de Nicolas sentada ao lado dele, com uma latinha de cerveja em mãos.

Usei novamente o trabalho como rota de fuga, mas na verdade nunca curti bebidas alcoólicas, cigarros ou drogas. Os efeitos que elas causam me desagradam. Momentos artificiais de alegria é só o que proporcionam, depois vem a realidade e de quebra uma baita dor de cabeça. Algo que consigo com trinta minutos no trabalho. Busco a felicidade verdadeira, a alegria e o bem-estar da vida. A plenitude. Coisas invendáveis em latinhas, cápsulas ou tabloides.

- Sem problemas, vamos dividir - bradou Pedro exalando bafo de álcool enquanto erguia a garrafa de cerveja gelada.

Tenho a impressão de que não sei negar e outra vez sucumbi à proposta, porém agora aceitei beber para evitar ser taxado de careta. No fim me deixei levar pela opinião de alguns amigos. Após o primeiro gole não consegui parar e bebi cada vez mais misturando cerveja, vodka e até gin. Eu ria enquanto partilhávamos as bebidas Cantamos, dançamos, zoamos e capotamos, mas lá no fundo havia sempre um vazio. Uma sede por algo a mais. Algo que não acabasse horas depois.

Certo momento, a galera decidiu tirar uma foto e, claro, fui escolhido para fotografar. Ser fotógrafo tem seus lados bons e ruins. O bom é que o cara não aparece na foto. Mas o ruim, é que o cara não aparece na foto. Eu poderia tirar uma selfie com o smartphone, mas nem se comparava com a qualidade gráfica da minha Canon.

Enquanto se organizavam na frente da casa, eu observava cada detalhe, cada gesto. Analisava todas as expressões deles. Outros amigos de Nicolas se ajuntam: Renato, Wagner e duas garotas que não conheço. Cada um põe os braços por cima dos ombros da pessoa ao lado e abrem um largo sorriso para a câmera. Me perguntei se a alegria era real. No fundo são amigos de verdade ou outro grupo de pessoas que se reúnem nos melhores momentos e somem nos mais difíceis? Para essa pergunta, desconheço a resposta.

Antes de concluir a fotografia, analisei Nick por um breve momento. Eu e ele nos parecemos muito. Somos baixos, magros. Temos cabelos negros, embora eu uso o corte militar e Nick cabelo despenteado. Nossa cor de pele é branca, mas a dele é bronzeada. Temos preferência pelo estilo gótico, porém me visto de maneira discreta. Calça jeans escura, camisa xadrez e uma jaqueta de couro. Já ele, apela para tons monocromáticos, coturnos e piercings.

A semelhança se estende além da aparência. Tanto Nick quanto eu, somos fanáticos por filosofia, ficções e ocultismo. Quando ainda estudávamos, passávamos o período debatendo ideias desde a origem da vida até acontecimentos aleatórios. De todas as pessoas que conheci, Nicolas foi o único a me compreender. As vezes ponderava a hipótese de ele ler mentes. Sabia como eu pensava. Conhecia minhas reações e reconhecia minhas ideologias. No entanto uma coisa nos distinguia completamente. A popularidade. Nick vivia rodeado de amigos, se socializava fácil, mas eu caminhava sempre a sua sombra. Sozinho.

Fui dormir com o gosto azedo na boca e o interior angustiado. Estar e não estar ali. Que diferença havia nisso? A mesma lacuna permanecia em meu coração não importando a situação ou momento. O que poderia ser? Que coisa me faltava que sem ela a existência não tinha sentido. Como posso lamentar a ausência de algo que desconheço e nunca tive? Cansado, desisto de buscar respostas. Mal sabia eu que toda lacuna seria preenchida. Não conseguia imaginar a grandeza do que estava por vir. Algo que não se pode ver, sentir ou compreender. Apenas perceber uma gota de sua magnitude.

Ponto De VistaWhere stories live. Discover now