- Um morto caminhando -

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Silêncio. Vazio. Nada. Escuridão.

Então houve luz. Como uma torrente. Fôlego. Calor. Vida e... um bip? Ainda desnorteado eu escutava um bip ritmado em meio a luz. O oxigênio correu pelo meu corpo. O calor do sol aqueceu meus ossos e entendi, ainda estou vivo.

Olhei para o lado. Vi o monitor cardíaco e identifiquei de onde vinha o som do bip. O simples movimento da cabeça causou uma dor inigualável como nunca havia sentido antes. Voltei a posição de repouso. Olhei para o quarto de hospital, havia mais alguém ali, um homem sentado em uma cadeira, ele estava cabisbaixo e com um livro na mão. Consegui ler Bíblia Sagrada na capa. O homem parecia adormecido e então o chamei:

- B-Bruno - a voz quase não saiu, porém ele permaneceu dormindo e com muito esforço chamei novamente mais alto - Bruno!

Vi meu amigo acordar assustado, ele deixou a bíblia cair no chão, olhou para os lados desnorteado tentando entender quem estava chamando.

- Aqui seu bobão, arg - Falei ainda com dores e então ele me notou.

Bruno levantou subitamente da cadeira e vi pela primeira vez os olhos dele se encherem de lágrimas.

- Graças a Deus - disse ele desacreditado e por impulso me abraçou estando eu ainda no leito.

- Ai, ai - gemi de dor - Calma, eu estou todo dolorido.

- Desculpa irmão - Fazia tempo que Bruno não me chamava assim, ele se endireitou e ajeitou a roupa. Vestia uma camisa social cor vinho, calça preta e sapatênis de couro preto.

- Se você queria me matar era só desligar os aparelhos - brinquei.

- Não fala besteira, eu nem acreditei que era você me chamando.

- Vaso ruim não quebra fácil.

- Não posso dizer o mesmo da sua Harley - disse Bruno.

Na mesma hora meu semblante caiu. A Harley Davidson era tudo que havia sobrado de lembrança do meu pai.

- Ah você deve estar exagerando deve dar para concertar, vai sair caro, mas eu dou um jeito e...

- Thiago - Bruno me cortou e fez que não com a cabeça - Foi perda total eu até tentei levar em algumas oficinas, mas não teve jeito, sinto muito.

Fiquei em silêncio por um tempo, mas tive que me conformar, infelizmente a vida se resume em ganhar e perder e com esforço eu poderia conquistar uma nova. Tirei o lençol e mesmo com dor tentei me levantar.

- O que você está fazendo, não se esforce os médicos precisam te examinar agora que você recobrou a consciência - afirmou Bruno tentando me segurar na cama.

- Não tenho tempo para ficar aqui eu preciso ir para casa e escrever o artigo para o Festival Editorial se eu ganhar, além do prêmio posso conseguir um bom emprego no Jornal e ai eu reorganizo a minha vida! - Afirmei convicto de que para tudo havia um jeito era só aproveitar a oportunidade.

- Thiago - Ouço Bruno me chamar novamente, tentando me manter de pé olho para ele para ouvir o que tinha a dizer - O Festival Editorial acabou...

- Como assim? - Franzi o cenho confuso - Eu que sofro o acidente e você que fica ruim da cabeça. Ainda tem uns dois meses para entregar o artigo.

- Eu sinto muito irmão - Bruno baixou o olhar - O Festival acabou há três meses atrás. Depois do acidente você ficou em coma por seis meses.

Imediatamente minha vista escureceu. Acabou? Seis meses em coma? Não, não NÃO! Tudo menos isso.

- Você está bem? - Bruno me segurava e tentava me manter de pé. Com a revelação minha pressão havia caído e perdi as forças das pernas, tombei para trás derrubando alguns aparelhos médicos no chão.

- V-você está brincando? - Bruno ficou em silêncio - Isso não tem graça irmão, me diga que você está brincando!

Bruno me ajudou a sentar na cama, eu o encarava seriamente. Ele fez que não com a cabeça e o fio de esperança morreu. Envergonhado baixei a cabeça, as lágrimas caíram como uma torrente mesmo que eu as tentasse segurar.

- Me perdoa, se eu tivesse sido mais fervoroso na minha fé talvez eu pudesse ter te ajudado, você ainda estaria no 100%Notícia e não teria feito besteira - Bruno tentava me consolar lançando sobre si a culpa pelos meus atos insensatos.

- Me deixa sozinho - sussurrei.

- Irmão, não fica assim... Nem tudo está perdido você ainda pode...

- EU DISSE PARA ME DEIXAR SOZINHO - Gritei, Bruno deu um passo para trás assustado com a minha reação atípica.

- Está bem, eu vou avisar a sua mãe, ela vai ficar feliz em saber que você acordou.

Fiquei em silêncio e então meu amigo saiu do quarto e desabei a chorar enquanto esmurrava a cama com ódio de mim mesmo. Quando já estava sem forças notei alguns itens no quarto. Em um criado mudo haviam flores, uma foto minha junto com minha mãe e minha irmã e um folheto. Me levantei, sorri para a foto, ignorei as flores e peguei o papel.

- Jesus te ama! - foi o que li no folheto, além do endereço de uma igreja. Com todo ódio rasguei aquele papel em dezenas de pedaços - Se me amasse mesmo não teria tirado tudo de mim!

Deus isso, Deus aquilo. Estava farto de tanto ouvir falar nesse Deus e na Sua bondade. Ele permitiu que meu pai morresse. Que eu e minha família vivesse na miséria por anos e quando tudo estava se encaminhando Ele causou aquele acidente. Tirou de mim a herança do meu pai, meus sonhos, a garota que eu amava, mas me deixou vivo para me humilhar e jogar na cara tudo o fez. Eu preferia mil vezes ter morrido naquele acidente ou que tivesse me levando ao invés de meu pai. Toda a esperança que eu tinha estava enterrada e ainda que meu coração bata e meus órgãos funcionem. Ainda que eu viva, me tornei um morto. Um morto que caminha sem nenhum propósito.

Ponto De VistaWhere stories live. Discover now