01| Aparências

Começar do início
                                    

A chuva começou a cair contra nós os dois e pareceu que aumentou quando paramos nos locais corretos para atingir o alvo. Fiquei a olhar em frente, começando a lembrar-me daquele dia aterrorizante, mas mais uma vez a voz insuportável do Matt fez-me esquecer de tudo.

Eu nunca o suportei. Ele pode-me ter criado desde os oito anos e ter-me dado tudo. Mas ele tirou-me ainda mais do que o que me deu. O dinheiro que ele me deu nunca substituiu nada. Eu só senti raiva dele, principalmente por ele me ter tornado naquele miúdo violento e insensível. E de me ter feito acreditar naquilo que me destruiu por completo, mesmo que eu nunca o tenha mostrado. Em parte eu tornei-me ainda mais insolente depois daquilo que fiz, mesmo que eu não tenha visto no momento. Eu lembro-me de fechar os olhos e depois de os ter aberto eu vi uma enorme poça de sangue. Eu lembro-me de ter corrido até ela. Eu fiquei também cheio de sangue. A minha roupa e as minhas mãos. Depois eu ouvi a polícia, mas o Matt já me tinha levado dali para fora.

Ele sempre soube que eu o odiava. Ele sentia o mesmo. Aliás, ele odiava toda a gente, assim como eu. Acho que as únicas pessoas que eu não consegui odiar naquele negócio eram os homens. Não que gostasse deles. Realmente eu nunca gostei de ninguém.

- Vamos, tu primeiro. Quero ver se ainda sabes acertar no alvo. – o corpo dele recuou, talvez com medo que eu pudesse disparar nele, o que caracterizava a situação como irónica.

Posicionei bem os pés no chão. Estendi o braço direito com a arma na mão e coloquei a esquerda na mesma posição, colocando o dedo indicador em cima do indicador direito e depois o polegar atrás do direito. Fechei os olhos por uns segundos, e depois de os voltar a abrir, disparei. Só que não acertei no ponto certo, e isso de certa forma irritou o Matt.

- Foda-se Harry. – ele empurrou-me e pisou o lugar onde eu estava. – Aprende de uma vez por todas como é que se dispara em condições.

Olhei para ele e numa questão de segundos, a bala atingiu o ponto vermelho no centro. Desviei o olhar para o homem e ele soprou a boca da arma, mostrando-se superior.

- Dispara outra vez. Se não acertares voltas a fazer mais cem flexões, à chuva!

Não que aquilo me tivesse preocupado. Porque eu nunca fiz tudo o que o Matt me mandou, mesmo que isso me tivesse obrigado a umas boas horas de treino extra para me castigar. E pode parecer simples de mais chegar ao ginásio e fazer flexões e pegar em pesos, mas realmente sob a rigidez dele, tudo se tornava ainda mais difícil, porque o Matt quando queria conseguia ser um filho da mãe, pior do que eu, que apenas me tornei como ele, num nível abaixo.

Voltei a posicionar-me no local correto e sem mais demoras disparei. Para minha felicidade e para infelicidade do Matt, eu consegui acertar no alvo. Decidi atirar-lhe a arma para os braços e virei costas caminhando novamente para o interior do ginásio. Ouvi os seus passos atrás de mim.

- Quero que vás lá baixo dar o almoço aos homens e depois ficas dispensado, por hoje.

- Eu não sou teu criado. – respondi com os dentes cerrados. – Por isso eu não tenho de obedecer às tuas ordens.

- Se quiseres sempre podes ser usado para uma próxima experiência. – e foi com aquela ameaça que eu fui pelas escadas até aos fundos, o que na realidade não dava para entender o seu aspeto de cave, devido à sua normalidade para fazer perceber que era uma casa normal.

Passei primeiro pela dispensa e peguei nas caixas da comida pré cozinhada. Quando fui à cozinha aqueci-as no microondas e depois fui para o quarto. Assim que abri a porta encontrei o Mike, o Scott e o Carl, cada um na sua cama. O meu olhar pousou, como em todas outras vezes no Carl, que estava deitado de barriga para cima a olhar para cima, mais precisamente para a fotografia que durante quatro anos ele sempre olhou.

- Podem vir almoçar. – falei monotonamente e eles levantaram-se os três ao mesmo tempo, como se estivessem comandados, tal e qual como robots. O que na realidade, não era propriamente mentira, uma vez que o Matt sempre usou a hipnose para controlar qualquer coisa que não conseguia com a violência.

Eles passaram à minha frente e foram para a cozinha. Fui atrás deles e vi-os sentarem-se nos bancos em frente à bancada. Eu fiz o mesmo e sentei-me à beira do Carl, que quando começou a comer, colocou a fotografia à beira do prato dele. Pela primeira vez consegui olhar para a fotografia e vi um rapaz e uma rapariga, talvez com idades entre os dez e os quinze.

Não que eu em alguma vez sentisse pena deles. Eu realmente nunca senti nada em relação às outras pessoas a não ser ódio. Mas, para aqueles três homens inocentes, eu conseguia deixar o ódio de lado e não ser mal educado com eles, como sempre fui com todas as outras pessoas. Porque eles não eram como o Matt. Eles só lá estavam obrigados, e eram usados em experiências.

- Quem são estes? – perguntei apontado para a fotografia.

- São os meus filhos. – ele falou baixo, a cabeça a encarar o prato.

Eu não disse nada, apenas por não saber o que dizer.

- Eu tenho saudades deles. Quer dizer, eu não os vejo há quatro anos, tudo por causa daquele filho da mãe do Matt, que me trouxe para aqui e eu ainda não percebi como.

Com a hipnose. Pensei. O Matt fez isso com todos. Eu lembro-me dele trazer o Carl, ele tinha trinta e oito anos na altura, porque foi o mais recente. Ele hipnotizou-o nos primeiros dias. Depois ele ficou demasiado envolvido na situação para passar por isso novamente, embora por vezes tenha sido necessário, e tenha sido eu a fazê-la.

- Tu é que me podias ajudar. Tu podias tirar-me daqui. – curiosa e milagrosamente ele olhou para mim. Mas eu desviei logo o olhar e senti-me enrijecer quando ouvi a palavra ajudar.

- Eu não ajudo ninguém Carl. Eu não te posso ajudar. – levantei-me pronto para sair.

- Vai haver alguma experiência hoje? – ele perguntou. – Eu não posso espetar mais agulhas no meu braço, eu estou cheio de picadelas e dói-me demasiado. Além disso eu sei o que pode causar. – eu lembro-me do Matt ter ficado completamente orgulhoso quando percebeu que o Carl era enfermeiro, porque assim podia ajudar mais especificamente.

- Hoje não. Mas um dia destes o Matt vai voltar a fazê-las.

- Podias mata-lo. – eu já estava a caminhar para sair e ir para minha casa, mas eu fiquei quieto no mesmo local, sem olhar para trás. – Eu sei o que aconteceu há dois anos atrás, eu vi.

- Foi um acidente. – elevei o tom e falei de forma rude.

- Não deixaste de o fazer. – ele contrapôs.

- Mas eu não o queria fazer. – cerrei os punhos. – Agora come, e nunca mais voltes a tocar nesse assunto. – subi as escadas e depois desapareci em direção à minha casa, conduzindo a uma velocidade um pouco elevada e perigosa.



Callous | h.sOnde as histórias ganham vida. Descobre agora