Capítulo 12 - Escolha

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O doce aroma do pêssego era tão irresistível quanto sua aparência. Beatriz mal podia esperar para sentir seu sabor. Ela estava prestes a dar uma mordida quando, com um flash, uma memória cruzou sua mente.

Na memória, Beatriz era uma criança novamente. Estava descansando em um banco e tomando água depois de um dia exaustivo na academia de lutas. Seu primeiro dia. Ela estava dolorida e com um olho roxo, mas ao esvaziar a garrafa de água, ela sorriu. Havia sido um dia muito bom. Seu pai, sentado a seu lado, sorriu também. Mas então ficou com uma expressão séria.
— Triz, o que você acha que é força de verdade?
Beatriz estranhou a pergunta repentina.
— Como assim?
— Você acha que vencer uma briga significa que você é mais forte que a outra pessoa não é?
— E não é?
— Não. A verdadeira força, não tem nada a ver com bater mais nem nada disso.
— E então o que?
— Quando um valentão te provoca e você acaba com ele, você acha que venceu? Não. Assim que você cede a provocação, deles, você já perdeu.
— Então eu tenho que deixar eles fazerem o que quiserem?
— Aí é que está. O que eles querem, é que você reaja.
— Mas então o que eu faço?
— Simples. Você olha bem nos olhos deles de forma firme e diz bem alto e claro “Não!”. E dê meia volta.
— Isso… não é tão fácil….
— Eu disse que era simples. Não que era fácil. Resistir a pressão é difícil. Às vezes muito difícil. É por isso que só quem é forte de verdade consegue fazer isso.
— Não sei se sou forte então.
— Você é! Eu sei que é. E além disso, você não está sozinha. Eu sempre vou estar com você. Até quando eu não estiver com você, eu ainda assim vou estar com você. Nunca se esqueça disso.
— Isso não faz sentido nenhum!
Beatriz riu e seu pai também. Os dois continuaram rindo enquanto a memória lentamente se desfazia e Beatriz voltava ao presente. Lágrimas começaram a cair e ela baixou a mão em que segurava o pêssego, o encarando com pesar.

— Qual o problema? O que você está esperando? — Ophidia perguntou.
Beatriz limpou suas lagrimas.
— Não — Ela disse baixinho.
— O que você disse?
Com um olhar firme, Beatriz encarou Ophidia diretamente.
— Eu disse não! — Ela disse, batendo seu pé no chão. O que a fez corar um pouco ao perceber que o gesto não é o mesmo vindo de uma adulta. Mas manteve sua postura firme — Não vou comer isso!
— Beatriz, acho que você não entendeu. Se você não comer esse fruto. Você vai morrer. E muito em breve.
— Eu sei. E não me importo.
— Como assim não se importa?! Não Seja ridícula!
Beatriz suava frio, mas não dava pra recuar agora.
— Eu não sei quais são os seus planos. Mas eu não vou fazer parte deles. Você é uma pessoa ruim. Bem ruim. Não vou te ajudar em nada. Devia ter te recusado desde o começo.
— Então é isso? Prefere morrer então?
— Sim! Essa é minha escolha!
Beatriz extendeu seu braço e soltou o fruto. O deixando cair ao chão.
— Entendi — Foi apenas o que Ophidia disse com um sorriso. O que deixou Beatriz ainda mais nervosa.

As serpentes estampadas na camiseta de Ophidia sibilaram o que surpreendeu Beatriz. Elas rastejaram pela camiseta e então através de suas calças até chegar ao chão. Se moviam como se fossem uma animação sendo projetada e eram extremamente velozes. Em um estante, já haviam alcançado Beatriz e giravam ao seu redor. Agora pareciam bem maiores. Elas então saltaram para fora do chão, se tornando serpentes reais ao invés de apenas desenhos. Cada uma delas abocanhou um dos braços de Beatriz bem em seus punhos. Foi tudo tão rápido que ela não conseguiu reagir. As serpentes então se transformaram em duas correntes de prata, prendendo Beatriz ao chão. Ophidia fez um gesto com sua mão e as correntes puxaram Beatriz em direção ao chão, a fazendo cair de joelhos. Beatriz a encarava ainda com o mesmo olhar firme. Ophidia se aproximou de Beatriz e se abaixou deixando seu rosto a apenas poucos centímetros dos de Beatriz.
— Beatriz, o que te faz achar — Ela disse com um susurro — que as suas escolhas fazem qualquer diferença?
Ophidia se pôs novamente de pé.
— Nós fizemos um trato. Eu cumpri a minha parte. E você vai cumprir a sua. Por bem ou por mal. Eu te ofereci parte do meu espírito e eu vou cobrar o preço.
Ao ouvir essas palavras, Beatriz sentiu uma dor de cabeça terrível. Memórias fluiam em sua mente novamente. Mas dessa vez era diferente. Não eram suas memórias. Simplesmente não poderiam ser. Ela viu algo estranho. Uma pessoa de joelhos assim como ela estava agora. Era difícil distinguir quem era. Pois sua aparência mudava constantemente. Primeiro parecia ser um grande homem usando apenas pele para se cobrir. Então parecia um guerreiro bárbaro, depois um cavaleiro. Todos com roupas diferentes, alguns de armadura, outros não. Mas todos claramente homens muito fortes. Estavam cobertos de sangue e feridos. Pareciam ter acabado de sair de uma batalha grandiosa. E de alguma forma Beatriz podia dizer que foram vitoriosos. A confirmação veio ao ela perceber que ao redor do homem (ou dos homens) haviam dezenas talvez centenas de pessoas inertes, provavelmente sem vida. Um campo de batalha completamente desolado. Assim como o homem de joelhos, os corpos no chão e todo o cenário se alteravam de acordo mudavam rostos fisionomia e vestimenta. Cada uma aparentando pertencer a uma época completamente diferente. Havia apenas uma coisa que permanecia igual. Beatriz engoliu em seco ao ver o que parecia um pilar de chamas púrpuras, ou melhor, as chamas assumiam uma forma quase humana, braços pernas, cabeça e… dois grandes chifres. A criatura também tinha três olhos
E tinha pelo menos quatro metros de altura. Beatriz já havia a visto nesta forma antes, por um segundo. Essa mesma criatura a estava acompanhando contra sua vontade por um tempo, mas Beatriz ainda tinha medo dela.
— Mortal… — A criatura falou, mas para o horror de Beatriz, não foi na mesma voz aparentemente inocente de sempre. Parecia um coro de dezenas de vozes assustadores reunidas — Eu lhe ofereci parte de meu espírito, e agora irei cobrar o preço.
Todos os homens pareciam completamente aterrorizados. Imploravam que por suas vidas e choravam. De repente o cenário parou de mudar. Agora era uma vasta planície. Os soldados caídos, usavam armaduras gregas, com espadas e escudos, alguns com arcos. O homem de joelhos já não era mais um homem. Em seu lugar, havia uma mulher da mesma idade de Beatriz. Ela usava uma armadura espartana de vermelho vivo, que ajudava a esconder as manchas de sangue. Ao ver seu rosto, Beatriz se assustou. Ela era igual a Ophidia. Seus olhos e cabelos eram de cores normais e ela era definitivamente humana, mas tirando isso, a semelhança era assustadora. A mulher não parecia estar com medo da criatura. Na verdade, ela parecia admirada. Então ela lançou seu rosto por terra.
— Eu me sinto completamente honrada por estar em sua presença! — ela disse á criatura — com sua ajuda eliminei completamente meus inimigos, protegi minha nação, tudo graças a você. Me ofereço de corpo e alma a você.
Beatriz quis impedi-la, quis gritar, mas não podia fazer nada. Era apenas uma memória.
— Realmente admirável — a criatura disse — Todos antes de você resistiram de forma patética. No fim todos percebem que sou inevitável, mas você se entregaria de bom grado?
— Sim! Não irei me opor! Eu vi o que uma pequena parte de você pode fazer, eu te aceito por completo.
— Muito bem! — a criatura disse — Erga-se mortal. Você receberá a maior das honras!
A mulher se pôs de pé.
— Diga-me, mortal, qual o seu nome?
— Ophidia!
— Ophidia, alegre-se! Pois a partir de hoje seremos um só!
A criatura explodiu em chamas, que envolveram Ophidia completamente, mas não as consumiram. As chamas se enfraqueceram  e diminuiram completamente. Ophidia agora estava sozinha. Ela virou seu rosto em direção a Beatriz e a encarou com seus olhos flamejantes. E então sorriu. A memória se desfez e Beatriz retornou a realidade.

Ela percebeu com angústia que não estava respirando e tentou retomar sua respiração desesperadamente. Ela olhou para Ophidia…. Ou quem quer que ela fosse com terror.
— Você… — Beatriz disse com dificuldade — Você roubou o rosto dela! roubou o nome dela! Você roubou tudo!
— Ora — a entidade disse — então você a viu? Você viu Ophidia? Ela é minha favorita sabia? Ela me lembra muito você. Por isso eu a escolhi como aparência. Sabia que você ia se dar bem com ela. E eu não roubei nada. Se você a viu, sabe que ela se ofereceu a mim. Por isso é minha favorita. Eu achei que você fosse igual a ela. Mas eu estava errada.
Ela encarava Beatriz com desdem.
— Todas… aquelas pessoas… você fez a mesma coisa com todas elas. Quem… o que é você na verdade?
— Como pode perguntar isso? Nós estivemos juntas desde sempre. Vamos, você me conhece. Desde o começo da humanidade, mesmo antes disso. Eu estava lá. Eu fiz de você quem você é hoje. Sem mim você não seria nada.
— Do que você está falando? Antes de você aparecer eu nunca ouvi falar em você.
— Ah mas você ouviu sim. O meu nome. Meu verdadeiro nome. Descreve um certo sentimento. Um sentimento maravilhoso. Toda vez que você o experiencia, você se torna mais próxima de mim. E você tem os meus parabéns. Você me deixou tão orgulhosa. Até mesmo venceu o meu torneio!
— Eu não entendo…
— Vou te fazer entender. Eu sou um dos grandes príncipes que regem esse planetinha imprestável. Um dos sentimentos primordiais. Eu sou aquela que chamam de “Ira”. Eu não preciso de você Beatriz. Só preciso do seu corpo. Você não tem escolha.

Diaboli LudumWhere stories live. Discover now