Quarenta e três

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Ariana

Saí da pousada, respirando fundo o ar fresco da madrugada.

Minha paz durou até meus olhos caírem sobre a caminhonete preta, estacionada na rua. Ele havia me esperado.

Com o braço apoiado na janela aberta, o rosto voltado na minha direção, Vinícius me olhava, como havia feito naquela noite em que me levou para um passeio de barco; como havia me olhado enquanto se aproximava pela varanda do casarão, para dizer que tinha encontrado um lugar para nós.

Senti um tremor involuntário. Comecei a atravessar a rua até a caminhonete. Parei ao lado da janela, sem encostar no carro. Àquela hora a rua estava deserta, com exceção de alguns vira-latas perambulando atrás de sacos de lixo largados na calçada, em que poderiam cravar seus caninos.

Os últimos clientes haviam partido há muito tempo e meus colegas tinham descido a rua e desaparecido. 

Eu havia demorado para sair de propósito, para não ser motivo de mais comentários no dia seguinte, se algum deles me visse conversando com Vinícius na rua àquela hora. Bastou ele ter aparecido na cozinha, para começarem a cochichar e rir atrás de nós, aumentando a temperatura na cozinha. Abreviei o máximo que pude a presença dele, sem discutir, quando ele disse que me esperaria na saída.

Havia várias polêmicas a respeito dele circulando entre o pessoal. A mais recente eram as suspeitas de Dr. Ernesto quanto à paternidade do filho que Cecília estava esperando. Tinham até feito uma aposta, a metade apostando que Vinícius era o pai.

O fato de ele nunca aparecer no Riviera e não ser visto com frequência na cidade, ao contrário de Heitor, que era uma figura carimbada, despertava a curiosidade nas pessoas. A teoria preferida da maioria, era de que se ele aparecia sozinho nos lugares, era porque devia estar pegando alguma mulher casada às escondidas.

Todos eles achavam que Vinícius e eu tínhamos ficado, na noite do aniversário de Cecília, quando ele e Heitor tinham aparecido na cozinha durante o jantar. E que eu o havia trocado por Heitor. Tive que deixar o assunto circular, até morrer, para não ter que revelar a verdadeira razão para eu ter me afastado dele. Ninguém ainda sabia que Heitor e eu tínhamos terminado, mas Vinícius, pelo visto, sim.

—  Eu levo você — ofereceu ele.

Apontei para o estacionamento da pousada, onde deixava o Corcel, quando tinha vaga sobrando.

—  Vim com o meu carro.

—  Eu lhe trago de volta amanhã.

Olhei novamente para a rua. Lá na frente, um vira-lata rasgava um saco de lixo e vasculhava seu conteúdo.

—  Eu não vou sequestrar você, Ariana.

Suspirei, dando a volta e entrando na caminhonete. Alguém podia nos ver, se continuássemos na rua.

—  Você está bem? — Ele perguntou, dando a partida.

—  Estou.

No dia que encontrei ele na prainha com a tia, quem estava me esperando era Heitor, me levou para sua casa e passamos a noite bebendo, para acordarmos de ressaca na manhã seguinte e acabarmos no rio.

Agora que terminamos, quem me esperava era Vinícius. Ele, por quem alimentei tantas fantasias no passado, que esteve no centro dos meus sonhos de adolescente.

Quando voltei da capital formada, meu objetivo era trabalhar até consolidar meu nome como chef  de cozinha, não imaginava que os dois irmãos cruzariam o meu caminho, que eu acabaria me envolvendo com os dois. 

Eu me sentia numa encruzilhada, ali na caminhonete com Vinícius. Ele não estava apenas me levando para casa, mas por um caminho de onde não teria como eu voltar com Heitor. Se eu não seguisse com Vinícius por esse caminho, estaria desistindo dele de vez, senti que ele não voltaria a me procurar.

Olhei para fora pela janela, vendo a igreja com a torre iluminada, a praça em frente com o morador de rua embrulhado no seu cobertor gasto, o único bem que ele possuía, além do vira-lata que o seguia por todo lado.

Foi ali, naquela praça, que vi Vinícius pela primeira vez, durante um bazar beneficente da igreja, caminhando entre as barracas com a tia. Desde então ele tinha passado a ocupar os meus pensamentos com frequência, com sonhos secretos, que eu não ousava partilhar com ninguém.

Quantas pessoas vêem um sonho se tornar real? E depois, eu acordaria, ou continuaria vivendo como se estivesse sonhando?

Saí do devaneio, quando Vinícius tocou o meu braço. Senti um arrepio me percorrer. Ele dobrou uma esquina, entrando por uma rua escura, se afastando do centro.

Não estávamos indo para minha casa.

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