Quatro

1.8K 176 103
                                    

Sábado à noite era uma loucura no Riviera.

Parecia que a cidade inteira resolvia jantar no restaurante da pousada. Nessas noites, juro que não sabia porquê havia escolhido me tornar chef de cozinha. Era um emprego pouco remunerado, estressante, sufocante, com vários utensílios mortais à mão.

Quando um prato não saía do jeito certo, eu não sabia qual de nós soltava mais fumaça, se eu ou o fogão. Mas quando as coisas fluíam bem, como uma orquestra afinada, eu me sentia nas nuvens, o cansaço desaparecia e no final da noite, quando o último prato era servido, o sentimento de missão cumprida me enchia de orgulho. Era gratificante saber que a população mais abastada de Paraisópolis tinha ido ao Riviera provar a minha comida.

Naquela noite, depois que terminamos de limpar a cozinha, Dr. Ernesto, dono da pousada, me chamou no escritório. A sorte dele é que a noite não tinha sido das piores, ainda me restava um pouco de sanidade.

—  Alguém reclamou da comida, Dr. Ernesto? Porque se...

—  Pelo contrário, Ariana! Estão satisfeitíssimos, por isso eu lhe chamei. Nunca se comeu e se bebeu tanto no Riviera, tanto que nosso estoque de vinhos está acabando. Já marquei com Dr. Otávio uma degustação, para renovarmos o estoque. Quero que vá até a vinícola amanhã, às onze horas. Vamos criar uma carta de vinhos especialmente selecionados para acompanhar os seus pratos.

Tive vontade de beijar a calvície de Dr. Ernesto. Uma carta de vinhos para acompanhar os meus pratos! Era em momentos assim que eu sentia que os dois anos de estudos que passei longe da família e dos amigos tinham valido a pena.

No dia seguinte cheguei cedo na vinícola. Não sabia onde seria a degustação portanto dirigi até a empresa, distante cerca de dois quilômetros do casarão. Eu sabia que havia turistas visitando o vinhedo.

Heitor, com a sua conversa mole, costumava acompanhar os turistas durante as excursões pela vinícola, vendendo vinho  que nem água para as turistas. Quando saí de Paraisópolis, Heitor era gerente-geral da vinícola, mas desde que voltei tinha ouvido rumores de que ele havia saído do negócio da família.

Enquanto dirigia até a empresa pela estrada poeirenta que cortava o vinhedo, avistei uma aglomeração de pessoas, carros estacionados e tendas. Reconheci a caminhonete preta que tinha visto na tarde anterior na frente do casarão dos Castros Oliveira. Procurei entre as pessoas e vi Vinícius no meio, falando para um grupo de pessoas. Passei devagar com o carro, as janelas abertas apesar da poeira, o calor era sufocante. Ar condicionado era um item de luxo fora do alcance do meu Corcel.

Vinícius usava uma camisa vinho e calça preta, um cinto grosso atravessando o cós; óculos escuros protegendo seus olhos do sol. Apesar dos óculos, percebi que ele me viu. Estacionei o carro ao lado da caminhonete. Depois de um tempo, Vinícius se afastou do grupo e veio caminhando até o Corcel.

Havia muitas semelhanças entre ele e Heitor, mas ao mesmo tempo algo que os distinguia essencialmente, eu não os confundiria nem de longe. Heitor era o típico bad boy, enquanto Vinícius exalava uma sofisticação que anos vivendo no Rio lhe deram.

—  Veio para a degustação, eu suponho. — Até o jeito de falar dele era diferente. — Quer dar uma volta pelo vinhedo e provar as uvas primeiro? Pode ajudar na hora de escolher os vinhos.

Aceitei prontamente.

Ele abriu a porta do Corcel, o suficiente para eu sair, passando bem próxima, sentindo a sua fragrância masculina. Vislumbrei os olhos dele por trás das lentes escuras dos óculos de sol, me fitando. Heitor teria me olhado com um olhar safado, eu era até capaz de adivinhar os pensamentos dele; mas não conhecia Vinícius o suficiente para decifrá-lo. Tinha, porém, aprendido uma coisa a seu respeito: ele era capaz de mentir sem alterar a fisionomia, até para a mãe.

Percorri um trecho do vinhedo ao lado dele, entre as centenas de funcionários que trabalhavam na plantação, além de outras centenas que trabalhavam na fábrica. Vinícius me explicou alguns processos do cultivo, me deu nomes, que eu confesso, não memorizei nenhum. Ele apanhava um ou outro cacho do pé e me dava as uvas para provar. Eram todas deliciosas, encorpadas, algumas mais doces, outras mais ácidas. Cada vez que os seus dedos roçavam os meus, eu sentia uma corrente elétrica percorrer o meu corpo. Se aquela sensação pudesse ser engarrafada e comercializada, se tornaria uma campeã de vendas.

Depois que ele saiu de Paraisópolis, há oito anos, tinham se espalhado alguns boatos, mas os rumores logo tinham cessado. Aquela história sobre a saúde dele, que Heitor me contou, e eu tinha ouvido Dona Laura repetir algumas vezes à mesa, quando tinha visitas, contava com o atestado do Doutor Jairo, o médico de Paraisópolis, que cuidava da saúde da família Castro Oliveira há anos.

Vinícius, pensei, olhando-o naquele cenário bucólico, entre as videiras carregadas e perfumadas, os raios do sol refulgindo entre os cabelos castanhos, dourando-os, os olhos ocultos atrás dos óculos escuros, o nariz reto mais bonito que eu já tinha visto, com aquela boca carnuda que no momento degustava uma uva.

Quem é você, realmente, Vinícius Castro Oliveira?

Segredo de FamíliaOnde histórias criam vida. Descubra agora