Vinte e oito

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Ana Beatriz

Era a primeira vez que eu pisava na fábrica, desde que voltei. 

Meu pai havia me convencido a acompanhá-lo naquela manhã, com a esperança de que eu me juntasse a Vinícius na administração. Vinícius teve que sair para resolver um problema externo e meu pai tinha uma reunião, de modo que fui entregue aos cuidados de Rômulo Dantas, o superintendente.

—  Não quero minha filha andando sozinha por aí. Entende? 

Como se eu ainda fosse criança.

—  Sim senhor, Dr. Otávio.

Rômulo me levou por uma incursão pelos vários setores da fábrica, enquanto ia descrevendo apaixonadamente as inovações implantadas nos últimos anos. Era evidente o seu envolvimento com o negócio todo. Meu pai mais uma vez havia acertado na escolha para o cargo. Não me surpreendia que a vinícola continuasse crescendo à pleno vapor, mesmo eu tendo testemunhado o fechamento de muitos comércios na capital. Vi muitas mães com crianças pequenas pedindo ajuda nas ruas de Recife, ajudei como pude, mas eu sabia que era muito pouco. Aqui no interior não vemos tantas pessoas necessitadas pedindo auxílio, embora muitas famílias vivam com o mínimo. Agora que eu estava de volta, talvez pudesse fazer algo para ajudar essas famílias, iniciar algum projeto que beneficiasse a classe menos privilegiada; mas antes teria que falar com meu pai a respeito.

—  Você não gosta muito daqui, não é?

Rômulo me tirou do devaneio. Voltei-me e o encontrei me analisando, a fisionomia compenetrada.

—  Gosto. Eu apenas não me desliguei completamente da minha vida na capital.

—  Por que voltou?

Por causa de Estevan...

—  Meu pai quer expandir a vinícola e precisa de mim aqui.

Ele assentiu. Era jovem ainda, por volta dos 24~25 anos, a mesma idade de Vinícius. Sua íris era escura como carvão molhado — os olhos mais bonitos que eu já tinha visto. A pele negra sob a qual se destacava os músculos naturalmente esculpidos, os lábios grossos, o maxilar quadrado formavam um conjunto bem atraente, para as moças daqui. Meus pensamentos e emoções estavam ligadas à uma pessoa que estava há quilômetros daqui, que estava fora do meu alcance por uma razão que ia além da distância.

—  É nobre da sua parte pensar na família antes de pensar em si mesma.

Ele realmente acreditava naquilo. Era melhor assim, eu não iria querer discutir um relacionamento fracassado com uma pessoa que mal conhecia. Retomamos o percurso, terminando na sala de Vinícius. Ele ainda não tinha voltado. Sentei-me à mesa, imaginando como seria minha vida dali em diante, tocando a vinícola, passando os dias numa sala igual àquela, sem nenhum contato com a vida que havia deixado para trás. 

Senti lágrimas quentes subirem aos olhos, mas as engoli. Não era o lugar nem a hora para sentimentalismo. Encontrei o olhar atento de Rômulo sobre mim.

—  Você não tem o que fazer? — indaguei bruscamente, incomodada com a atenção excessiva.

—  Recebi ordens para não deixá-la sozinha.

Eu odiava ser tratada como a princesinha de Dr. Otávio.

—  E sempre obedece ordens?

—  Depende.

Ana Beatriz, cuidado...

Eu sabia aonde aquela conversa nos levaria, se eu deixasse. Mas não estava com disposição para testar minha imunidade em relação ao avanço daquele rapaz.

—  Estou segura aqui, e não pretendo sair até Vinícius voltar.

—  Eu também não.

Ele sentou-se do outro lado da mesa e apanhou alguns papéis, passando rapidamente os olhos por eles. Os minutos se arrastaram, até a porta se abrir e Vinícius finalmente aparecer.

—  Pensei que tivesse entrado na sala errada — disse, parado na porta. 

Vi o olhar de meu irmão pousar em Rômulo, antes de encontrar o meu. 

Sempre me dei melhor com Heitor, por causa da sua espontaneidade. Vinícius sempre foi mais fechado, se enclausurando de vez antes de se mudar para o Rio, aumentando o distanciamento entre nós. Agora que nós dois estávamos de volta, mais maduros e com uma bagagem extra por termos vivido longe da vinícola, tínhamos a chance de estreitar os laços. 

Um ponto por onde poderíamos começar, era esclarecendo a razão pela qual ele foi mandado para o Rio. Eu sabia que meu irmão nunca esteve doente, precisando mudar os ares para se tratar, então aquela mentira adotada pela família não passava de um acobertamento. Para o quê? Era o que eu tinha o direito de saber, afinal, contribuí com a mentira durante todos aqueles anos.

Rômulo levantou-se, cedendo seu lugar à Vinícius, que afundou na cadeira.

—  Problemas? — Perguntou Rômulo.

Vinícius respirou fundo.

—  Dos grandes — disse, com o olhar fixo em um ponto da sala. Continuou, pensativo: — Eu vou resolver, mas Heitor vai ficar me devendo.

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