CAPÍTULO 9

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"Ele só queria me deixar confusa e envergonhada". Repeti pra tentar me acalmar. Como sempre me deixava quando criança. Se não fosse isso, eu não teria aquele pensamento obscuro de, mais uma vez, tentar atropelar ele. E com razão, aquele menino me dá nos nervos. Onde já se viu, rir assim da minha cara tão descaradamente? Eu entendo que éramos amigos, mas já passou, ele não pode mais se comportar assim.

Se ele ainda tem afinidade comigo, tudo bem, mas ele não pode achar que eu tenho alguma afinidade com ele, não mais.

É isso ai, eu vou ignorar. Fingir que não conheço ele, passar pelo corredor do colégio e não falar com ele, vou tratá–lo como um desconhecido e seguir a minha vida. Eu não posso deixar ele me mudar. Não posso deixar outra pessoa me mudar.

Quando cheguei em casa, encontrei a porta da frente um pouco aberta. Isso não era normal aqui no Rio. Porta aberta é sinal de arrombamento, e nunca deixamos nada que faça parecer como um convite. Isso é explicado desde quando éramos crianças: Se você estiver sozinho, não deixe nada aberto.

Tudo bem que, as vezes, parece que estamos presos dentro de casa. Não é como nos Estados Unidos que possuem muros pequenos e cerquinhas com gramas aparadas, mas eu prefiro me sentir presa em casa, do que ver um presidiário dentro de casa.

Quando passei, devagarinho, quase parando pela porta, ouvi sussurros de conversas vindo da cozinha e tratei imediatamente de pegar alguma coisa próxima para usar como arma. Infelizmente a única coisa perto que encontrei foi meu livro de matemática do colégio. Acho que poderia assustá–lo dizendo, "Tome uma surra de calculo, seu filho da mãe!" e atacar o livro pesado bem em cima da cabeça dele. Daria tempo de sair correndo e pegar o celular que estava em cima da mesa da cozinha até ele se levantar. Se existir dois deles, eu simplesmente saio gritando socorro na rua. Isso se eles não estiverem com arma, o que é bem provável.

Se estiverem, eu posso chegar devagarinho pela parede e olhar quantos são. É só não fazer nenhum movimento brusco e voltar para a porta nas pontas dos pés, mas se eles me virem, bom, aí é adeus Melissa.

Estava tentando bolar algum jeito de escapar, já com o meu livro de matemática em mãos, quando alguém apareceu na sala de estar. Quando vi a sombra, fui logo tratando de jogar o livro na cabeça do assassino. Claro que fiz isso com os olhos fechados, porque não queria errar e levar um tiro. Quer dizer, eu ia errar de qualquer jeito, nunca fui boa de mira, então pelo menos assim eu não veria o sangue escorrer em mim. Só que ao invés de atirar, o assassino segurou minha mão. Soltei um grito tão alto, mas tão alto que tenho certeza que algum vizinho já estava ligando para á policia. Talvez eu até agradeceria ele depois, porque eu realmente estou achando que vou desmaiar.

– Mel, você tá doida!? – A voz que ouvi era conhecida, mas distante.

Meus olhos estavam tão fechados que a pessoa teve que me sacudir. Quando ele o fez, senti suas mãos fortes em meu ombro e de repente, tudo ficou mais calmo. Eu me senti segura e ao mesmo tempo quis me xingar, porque me senti segura com um assassino. Mas aquele cara não era nenhum assassino, se fosse, ele estaria espionando minha vida passada para lembrar de me chamar de Mel.

Abri os olhos e imediatamente meu corpo estremeceu, senti vontade de socar a cara dele por ter me feito sentir medo, e por ter feito me sentir segura mesmo não vendo quem era. Queria socar a cara dele por simplesmente ser ELE, e por me fazer esquecer que a pessoa que estava me segurando podia ser muito bem um ladrão. Mas principalmente, queria socar a cara dele por ter sido o primeiro cara que fez meu corpo estremecer.

Meu Deus, sério, o que está acontecendo comigo?

– Mel? Você tá bem? Parece pálida. – Ele ficou me olhando com aqueles olhos tão negros quanto a noite e por um segundo, consegui me perder, novamente, naquela escuridão.

Droga, droga, droga, droga!

– Eu to bem! – Gritei, sem querer, juro. E me desfiz das mãos dele.

– Calma. Eu só fiquei preocupado. Não é todo mundo que quase me joga um livro de matemática na cara. – Ele disse, rindo. Eu simplesmente não acredito que ele estava rindo de mim de novo.

– Ah, já vai começar a gracinha é? – Disse, emburrada.

– Gracinha? O que? Tá falando de você, é? – Ele sorriu.

Esse cara nunca perde o humor?

– Você sabe que não estou falando de mim, Fernando. – Disse, por fim.

– Eu sei que não, mas eu estou. Você ficou uma gracinha com medo. Deu uma vontade, mas bem pequena, de te proteger.

– Ah, vai zoando, vai. – Empurrei ele para abrir caminho. – Como chegou aqui tão rápido?

- Peguei uma carona com seu pai. – Deu de ombros.

- Isso não explica muita coisa.

- Seu pai estava indo pra casa. Pegou um atalho. Acabamos de chegar.

- Acabamos? – Perguntei em duvida. Sem saber se ele estava falando só dele ou de mais alguém.

Quando cheguei na cozinha vi minha família toda, meu irmão, meu pai, e a avó do Fernando, todos conversando de forma animada. Já fazia um tempo que não ia na casa da vó dele, não sabia que estava com tanta saudade e que iria ficar tão feliz por encontrá–la aqui em casa. Parecia que aqui, dentro de casa, ela era mais família do que já foi antes. Meu coração se aqueceu pela terceira vez naquele dia.

Eu me lembrei de tudo. Olhando para ela, sentada na cadeira da cozinha, consegui ver visivelmente minha infância. Ela era todo o meu cuidado e amor. Ela era minha proteção quando meu pai falava que eu não conseguiria mais ver minha mãe, porque ela estava tão longe, que nenhuma estrela conseguiria alcançá–la.

Lembro de ter ficado triste na mesma hora e ouvir meu pai sussurrar no meu ouvido. "Isso não importa filha, nenhuma estrela pode ouvi–la, porque a única estrela que ela quer ouvir está aqui em baixo". Então ele apontou para minha testa e continuou. "E essa estrela é mais brilhante do que as outras, porque é a única que sua mãe quer ver". Desde aquele dia, entre todos os dias, eu olhava para o céu e conversava com minha mãe. Contava tudo, todas as vergonhas, segredos e medos. Tudo. Até o dia que alguém me disse que aquilo era mentira. Então meu mundo desabou, e foi segurado pela única pessoa que eu insistia em largar.

Olhei para trás e vi novamente o garoto que, sem perceber, estava me mudando. E eu realmente não sabia se aquilo era bom ou ruim, se eu queria que ele continuasse, ou se gritaria para ele parar. Eu estava confusa, e ao mesmo tempo queria toda a confusão do mundo para me sentir como me sinto agora. Completa.

:}V)

O jogo da verdade [COMPLETO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora