Capítulo XXXV - Berço de Jade

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Durante os Dias Sombrios, o que nos dias atuais se conhece como o Império de Park não passava de uma vasta gama de territórios onde existiam as mais diversas formas de Estado e povoamento, cada uma com sua própria cultura, religião e estratificação social. Havia reinos totalitários de pequeno, médio e grande porte; cidades-livres que pregavam liberdade apenas em seus nomes, os grandes centros mercantis da época, onde se encontrava de tudo e onde tudo tinha um preço; feudos que prosperavam à custa do suor de seus camponeses; clãs que viviam isolados em vilas familiares, desenvolvendo e fortalecendo métodos de matança que os tornavam temidos e únicos, cobiçados artifícios de batalha; e algumas poucas cidades-estados que duravam em média duas décadas, quando tinham sorte. A guerra era um estado constante, o vitorioso de ontem era o derrotado de hoje, o escravo ou o húmus de amanhã. Ninguém estava seguro em lugar nenhum. Os governantes eram tiranos que exploravam seus povos até o limite, adultos roubavam da boca de crianças sem dó nem piedade, estupros ocorriam à torto e à direito. Laços sanguíneos não significavam nada. Infância era um conceito abstrato, desconhecido por muitos e ignorado por todos. Luxo e miséria dividiam espaços estreitos sem problemas, morrer de fome e exaustão e apodrecer à céu aberto, camuflado pelo verde do campo ou bem no meio das vias mais movimentadas, era corriqueiro, ninguém se importava. A morte, seu mau-cheiro e feiura eram parte do dia a dia.

Os fortes massacravam os fracos sem se valerem de máscaras, o “poder fazer” era tudo de que necessitavam para ter as imagens e as consciências limpas, e aos fracos não restava saída, senão tornarem-se fortes ou sofrerem até a morte. Gentileza, piedade e amor não passavam de fantasia de gente desesperançada, desesperada, sem opção alguma.

Foi essa gente desesperançada a ansiar por um mundo diferente, desesperada o bastante para implorar aos deuses — quaisquer deuses que não os pertencentes ao panteão abissal, que doutrinava seus algozes, respaldando seus vis feitos e se alimentando deles — que os livrassem da terrível sina que a crueldade que regia o mundo lhes impunha desde o nascimento, que lhes dessem a oportunidade de conhecer uma vida sem dor e sofrimento, uma vida sem medo.

O Mestre da Luz ouviu a súplica dos fracos. Apoiado pelos Elementais, ergueu armas contra Kud e suas hordas de monstros no plano espiritual e por sobre a montanha mais alta do oeste, pico estéril, seco e sem valor, seu poderoso sangue derramou. Seria ele, não Dame Aérinne — Damealine, Damealin, Dameolin, como foi se chamando à medida que as boas novas passavam de boca em boca, de pouco em pouco, de povo em povo —, a lidar com os emissários do Rei do Tormento que infestavam estas terras e a libertar o coração dos homens da depravação.

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Ji Min estava de pé sobre uma nuvem. Ele quase caiu ao se dar conta disso, mas conseguiu se equilibrar ao ouvir a voz sem características da Senhora da Fortuna alertá-lo de que aquilo era nada mais que uma lembrança. Mulrahee — ou melhor, a versão dela que havia vivenciado aquele dia mais de dois milênios antes — estava em sua plena forma de coelho branco hipercrescido, de pé bem no centro da pequena nuvem, o que não dava muito espaço para que Ji Min — logo à sua direita — se mexesse. Do contrário, ele cairia. Mas fez o possível para não se preocupar, era só uma lembrança mesmo. Se caísse, sua única dor seria a de sua curiosidade por não conseguir ver a lembrança inteira.

Havia outros quatro animais à vista. Um grifo cinzento circulando no ar à norte, um urso castanho sobre um pilar de rocha tão alto quanto às nuvens — o que fez com que Ji Min desconfiasse da procedência natural do pilar — à leste, uma fênix vermelho-dourada empoleirada no que parecia um trono flutuante de rubis à oeste, e uma naja que parecia feita de escuridão, tão gigante quanto um dragão adulto serpenteando calmamente no ar a duzentos, trezentos metros abaixo da posição de Mulrahee e dos demais animais. Ela circundava uma montanha, fazendo-a parecer um pedregulho insignificante no meio de um parquinho infantil se comparada à sua magnitude.

Outlander || YoonjikookOnde histórias criam vida. Descubra agora