Prólogo

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Eles estão deitados juntos na cama, o colchão macio de penas afundando suavemente com o peso deles, a respiração pesada e o coração em paz. A bonita camareira e o nobre arrogante são agora um único ser, unidos pelo sentimento que existe um pelo outro, tão forte e inexplicável que quase podem tocá-lo com suas mãos trêmulas.

Ela nunca imaginou que se entregaria daquela maneira a alguém, antes do casamento, antes de contar ao seu papa e sua mama como se sentia. Podem dizer que é imprudente da parte dela se entregar a um senhorio que nunca poderia assumi-la perante a sociedade. Que ela deveria procurar por um bom ragazzo de sua própria vila para fazê-la uma mulher honesta. Mas ela não se importa mais, não naquele momento. Tudo que aprendeu e cultivou por anos, dentro do que acredita ser seu caráter deixou de fazer sentido no momento em que olhou dentro dos profundos olhos azuis de seu mestre pela primeira vez.

Ela quer apenas sentir a pele fria dele contra a sua, tão quente que poderia acreditar que está doente. Mas ela está mesmo doente por se permitir amá-lo daquela maneira... por se permitir estar na cama dele.

Desviando o olhar para sua mão esquerda, ela admira mais uma vez a joia que ele deu a ela em segredo, sua pedra verde brilhando mais forte que o sol no céu, talvez o bem mais precioso que algum dia chegaria a ter.

─ Gustavo... o que fazemos é perigoso. Vamos fugir das terras de seu pai antes que ele nos encontre... ─ ela tenta argumentar com seu amado, mas ele apenas sorri em resposta, os olhos fechados, fazendo com que algo dentro de seu estômago se mexa inquieto.

Ela sorri de volta, sentindo orgulho do homem que acredita poder chamar de seu. Ela não é como as outras garotas ingênuas que acreditam em qualquer coisa que lhe diziam. Mas havia algo de diferente no que existia entre eles. O sentimento que surgiu entre os dois fora lento e se firmava a cada palavra, a cada ato.

Amore mio... se preocupas demais com o que pode acontecer. Feche os olhos e aproveite comigo a visão que eu tenho de nós dois ─ a voz dele está rouca, arrepiando todos os pelos do corpo dela.

─ Conte-me então... ─ ela obedece e fecha os olhos, sentindo-se protegida naqueles braços queridos. Dentro do seu coração ela tem a certeza de que não há mal algum que possa acontecer a eles. O amor que sentem talvez seja forte o suficiente para vencer qualquer coisa.

─ Consigo ver uma cabana pequena... talvez um pouco abaixo do nível de alguém tão bellissima como você... mas estás feliz, sorrindo enquanto olha nosso filho correndo pelos nossos vinhedos ─  ela sente a mão dele em seu rosto, delicada, adoradora ─ Ele tem os seus olhos ─ ela não aguenta e abre seus olhos, absorvendo mais uma vez a beleza daquele que parecia mais um anjo do que um homem.

─ Eu gostaria que ele tivesse os seus olhos ─ ela fala baixo e passa os dedos calejados pelo rosto de Gustavo. Ao vê-lo estremecer com seu toque, ela afasta imediatamente sua mão, envergonhada.

E sem pedir licença, a verdade novamente se abate sobre ela, incômoda. Ela é apenas uma criada, deitada na cama de seu patrão. Que futuro poderiam ter, mesmo com todo o amor que sentiam? Ela não deixaria de ser uma criada. 

─ Podemos ter outro depois com os meus olhos ─ ele sorri e pega de volta a mão dela, levando-a aos lábios para um beijo. Ele não conseguia confrontá-la a respeito de seus medos de mostrar-se para ele. Ela ainda tem dificuldades em aceitar que o amor deles ultrapassa qualquer barreira social ou financeira. O amor que ele sentia correr dentro do seu peito é tão forte que Gustavo acredita poder vencer qualquer barreira imposta à eles.

E por este amor que o dilacerava, ele faria qualquer coisa. 

Ele não quer se casar com Cecília Gallerani. Ela é bela, influente e rica, e todos em Florença sabem de seu caso com Ludovico Sforza. O casamento seria apenas um ardil para aproximar as duas casas e dar a Cecília um passe livre para o castelo de Sforza, sem que a sociedade a julgue. Pelo menos abertamente.

Gustavo aceitara o acordo com alívio, pois daquela maneira também teria sua própria liberdade para continuar a viver da maneira que mais gostava: beber, jogar e participar das rodas de filosofia que Sforza organizava. 

Mas então conheceu a criada que seu pai havia trazido para dentro do castelo e soube que precisava tê-la para ele.

Antes poderia ser apenas um desejo lascivo, mas há muito não o era mais. Ele precisa vê-la sorrir por sua causa, aprender o que ela tinha a ensinar e a maravilhar com todas as histórias que trazia de suas viagens com seu pai. Ela era ávida por conhecimento, o que nunca seria possível ter em sua própria classe social.

Gustavo quer que ela entenda que o que o faz estremecer é a expectativa pelo toque dela, e não repugnância pela aspereza adquirida após anos de trabalho duro.

Antes que ele possa falar mais alguma coisa, a porta do aposento se abre num rompante, entrando seu pai e sua guarda pessoal, invadindo o recinto com violência. 

As informações chegam um pouco atrasadas ao seu cérebro e antes que possa pegar o florete, o capitão da guarda já está com suas mãos imundas em cima de sua amada, apertando seus braços pequenos com violência, a aspereza de sua manopla de ferro cortando sua pele. Ele a segura à sua frente, propositalmente expondo a nudez da criada para todos.

─ Eu poderia pedir que explique o que acontece aqui, Gustavo. Mas acho que entendemos muito bem. Somos todos homens, não é mesmo rapazes? ─ a voz carregada de escárnio de seu pai faz com que Gustavo pare de olhar para o capitão e volte seus olhos desesperados para seu pai, Cesare.

Padre... Eu posso explicar, apenas ordene que ele a solte ─ a voz de Gustavo está tremendo tanto quanto ele. A visão dela subjugada por um homem asqueroso que a olha com um desejo doentio o deixa enlouquecido.

─ Explicar o que, Gustavo? Não precisa se preocupar com esse pequeno deslize... vamos cuidar disso para você ─ Cesare sorri, a maldade tingindo suas feições e Gustavo entende porque todos temem o patriarca. Ele é capaz de fazer qualquer coisa para assegurar que tudo o que deseja se realize.

Qualquer coisa.

─ Não entendes, padre... Por favor, mande seus homens saírem e conversemos como homens... ─ Gustavo se levanta, aproveitando sua vantagem em altura com os outros guardas. Pouco importa a sua própria nudez.

Ele evita olhar para a garota que treme sonoramente perto da janela, para não fraquejar e fazer qualquer besteira que coloque os dois em perigo.

─ Você quer conversar como homem, Gustavo? Depois de ter agido como um moleque, se enrabando em qualquer cameriera que passa pela sua frente, com o casamento marcado e sua noiva estando sob o mesmo teto? ─ Cesare faz uma pausa enquanto fica vermelho de ódio e vira seus olhos para a criada nua, acuada nos braços ferozes do capitão ─ Apesar de que eu até entendo porque você escolheu esta... é uma bela rapariga mesmo, Gustavo.

Padre, rogo-lhe para que seja mais respeitoso com a minha noiva...

─ Exatamente, filho. Por ser respeitoso à sua noiva, que descobriu as suas escapadelas com a putana aqui, vim dar um jeito na situação antes que ela desista do seu casamento.

Gustavo observa incrédulo enquanto seu pai levanta a mão, sinalizando aos seus guardas algum comando já arranjado. Dois guardas seguram o filho de Cesare, enquanto este pega seu florete e o passa de maneira sugestiva pelo corpo da mulher que arregala ainda mais seus olhos castanhos imensos. Sem hesitar perante seu senhorio, nua em frente daqueles homens que a olham com desejo e escárnio, a criada mostra mais caráter e coragem do que qualquer outro que Gustavo conhece.

Ele não pode fazer nada a não ser gritar enquanto seu pai enfia o florete no estômago da mulher que ele ama.

─ MELINDA! – Gustavo espera que ela a escute, que olhe para ele. Mas ela já parece entorpecida pela morte.

A última coisa que Gustavo vê antes de perder os sentidos com um grito selvagem, é sua noiva ser empurrada pela janela, o barulho da carne dela despedaçando o vidro fino e sua vida desaparecer na escuridão.

A Chance do TempoWhere stories live. Discover now