A Viajante.

By guiguiroseira

9.1K 1.7K 1.6K

[Obra registrada na Biblioteca Nacional. Plágio é crime.] Março de 2016: Após o aparecimento de estranhas luz... More

A VIAJANTE
ZERO
Parte I
UM (i)
UM (ii)
UM (iii)
DOIS (i)
DOIS (ii)
DOIS (iii)
TRÊS (i)
TRÊS (ii)
TRÊS (iii)
Parte II
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ (i)
DEZ (ii)
Parte III
ONZE
DOZE
Parte IV
TREZE
Parte V
CATORZE
QUINZE (i)
QUINZE (ii)
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE (i)
DEZENOVE (ii)
Parte VI
VINTE (i)
VINTE (ii)
VINTE E UM (i)
VINTE E UM (ii)
VINTE E DOIS
Parte VII
VINTE E TRÊS
Parte VIII
VINTE E QUATRO (i)
VINTE E QUATRO (ii)
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
Parte IX
VINTE E NOVE (i)
VINTE E NOVE (ii)
Parte X
TRINTA
Parte XI
TRINTA E DOIS
TRINTA E TRÊS
Parte XII
TRINTA E QUATRO
AVISO: Comemoração
TRINTA E CINCO
Epílogo
FINAL
Nota do Autor

TRINTA E UM

96 14 24
By guiguiroseira


Scott e Margot saíram da casinha do lago e pararam lado a lado na varanda. A noite caíra. As estrelas e a lua salpicavam o céu. Dava para sentir o cheiro salgado do mar no vento frio que soprava. A plaquinha que dizia Nosso Refúgio, pendurada na porta de entrada da casa, balançava. Scott tirou do bolso do sobretudo o último cigarro artesanal que trouxera de Corinna. Acendeu-o com um fósforo.

- Me dá um pouco – disse Margot.

Ele ergueu uma sobrancelha para ela.

- Desde quando você fuma?

- Desde agora. Anda, me dá.

Scott estendeu-lhe o cigarro amassado. Margot tragou fundo e soltou a fumaça. Não tossiu, o que fez Scott pensar que ela já fumara antes.

- Skies disse que partiremos amanhã cedo – ele pegou o cigarro. – Uma das famílias com casas de veraneio tinha um barco aqui na ilha. Ele o consertou alguns anos atrás. Disse que tem combustível suficiente para nos levar até Nova York – cuspiu a fumaça e bateu a mão em frente ao rosto para dispersá-la. – Parece que é um barco bem grande, com espaço pra todo mundo.

- Um barco bem grande. É esse o seu argumento para me convencer a ir?

- Não... Bom, é.

Ela estendeu a mão e Scott lhe entregou de volta o cigarro.

- Eu sei que você acredita neles, Scott...

- Não sei se acredito.

- Bobagem. Acredita, sim. Tá na sua cara. Você sempre foi assim. Até os sete anos, acreditava que as moedinhas debaixo do seu travesseiro eram presentes da Fada do Dente.

- Eu só fingia acreditar nisso para deixar a mamãe e o papai felizes.

- Eles não deixavam o dinheiro para você. Eu deixava – Margot respondeu. – Não estou julgando você. É bom acreditar em alguma coisa. Mas isso é difícil pra mim.

- Por quê?

Ela abriu a boca para responder, mas limitou-se a dar de ombros. Tragou o cigarro uma última vez, jogou-o no chão e pisou em cima dele para apagá-lo.

- Acho que a questão não é no que acreditamos ou deixamos de acreditar – disse Scott. – Lembra-se do que você falou para mim naquela noite, antes de eu ir embora de Corinna? Sobre essa vida ser a única que temos e que as coisas nunca vão melhorar?

Margot abraçou os cotovelos, apertando os braços contra o peito.

- Eu não quis dizer aquilo. Foi idiotice.

- Não, não precisa pedir desculpas – disse Scott. – Você falou a verdade. Essa vida fodida nesse mundo fodido é a única coisa que temos. E, provavelmente, não vai mesmo melhorar. Só que isso não quer dizer que nós precisamos sobreviver a ela. Podemos fazer mais.

Scott fez um gesto com a cabeça para a casa, dentro da qual Emily dormia.

- Emily pode ser a nossa chance de fazer mais – ele disse. – Talvez você esteja com a razão e esse papo sobre salvar a humanidade seja coisa da cabeça deles. Mas e se não for? Se Emily for mesmo o que eles dizem, e nós a abandonarmos, estaremos desperdiçando a nossa única chance de consertar esse mundo. Então, é, eu acredito na história deles porque escolhi acreditar. Decidi pagar para ver. Vale o risco, não vale?

Margot o olhou em silêncio, mastigando o lábio inferior.

- Você ensaiou esse discurso?

- Um pouquinho – Scott sorriu.

- Hum. Foi bom.

- Isso é um "sim?" É um "sim, irmãozinho, eu vou com vocês"?

- Isso é um "não sei, irmãozinho, você pode calar a porra da boca um pouco?".

- Já é melhor do que um não.

Ela deu-lhe um sorriso de canto. O vento aumentara de força, bagunçando os cabelos dela. Margot os amarrou em um rabo-de-cavalo. Scott notou as rugas nos pés de seus olhos e sentiu o coração doer.

- É melhor você entrar – ela disse, descendo a escada da varanda. – Descanse para a viagem.

- Aonde você vai?

- Preciso pensar, Scott – ela respondeu sem se virar para ele. – Vá dormir.

Na varanda, Scott enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo e observou Margot se afastar. Ela fez uma curva na trilha que seguia pelas árvores e desapareceu de vista.

- Ela saiu sozinha?

A voz veio de trás de Scott. Ele virou-se e encontrou Henry parado na soleira da porta, com o rifle de caça pendurado no ombro.

- É. Ela disse que queria pensar.

- Aqui é um bom lugar para isso – Henry passou por Scott e desceu a escada atrás de Margot. – Com todo esse silêncio, você pensa até enlouquecer, se quiser. Não se preocupe, vou cuidar dela.

Scott teve que rir daquilo.

- Henry, vai por mim: Margot precisa de alguém para cuidar dela tanto quanto um peixe precisa de tênis de corrida.

- Acredito em você. Mas vou dar uma volta mesmo assim. Também gosto de aproveitar a noite para pensar.

Bom, se ele insistia. O pobre garoto voltaria com o rabinho entre as pernas depois que Margot o colocasse para correr. Scott imaginou a cena e riu de novo, acenando para Henry antes de entrar na casa.

Fechou a porta atrás de si. Estava silencioso dentro da casinha do lago. Podia-se ouvir o som das ondas quebrando no mar. A luz das velas pintava de laranja as paredes da sala. Donna contara que eles haviam tido um gerador por um tempo, até que a gasolina acabara. Aquele era um mundo escuro.

No sofá da sala, enrodilhada em um cobertor e com a cabeça em um travesseiro velho de fronha rasgada, Emily dormia. Parecia a coisinha mais frágil do mundo, enrolada com os joelhos apertados contra a barriga, chupando o polegar direito. Suas pálpebras se moviam de leve com o movimento dos olhos. Talvez estivesse sonhando. Não pela primeira vez, Scott precisou lembrar a si mesmo que ela só tinha sete anos. Nessa idade, como Margot dissera, ele ainda acreditava na Fada do Dente. Salvar o mundo nem lhe passava pela cabeça.

Scott sentou-se de frente para a garotinha e olhou-a dormir. Uma cópia perfeita de Zoey: o mesmo nariz empinado, o mesmo queixo pontudo, as mesmas sobrancelhas, o mesmo cabelo. Tudo nela era humano: não havia um traço sequer de outro mundo em sua aparência.

Ela é uma criança. Só isso.

Ainda assim... Aquilo que ela fizera na cidade dos Homens Magros. Scott se lembrava muito bem. Ela não parecera uma criança naquela hora. Nem humana.

Emily se mexeu no sono, e parte do cobertor escorregou para o chão. Scott a cobriu novamente. Skies e Donna deviam estar no quarto, dormindo. Mas onde estava Zoey? Ele foi para a cozinha e viu a porta dos fundos entreaberta. Olhou pela janela e encontrou Zoey lá fora, sentada perto do lago. Escutou música: uma melodia de ninar que recordava da infância.

Saiu para os fundos da casa e fechou a porta devagar. Zoey virou o rosto para ele. Tinha no colo a caixinha de música de Emily. A bailarina prateada rodopiava devagar ao ritmo da cantiga de ninar.

- Oi – disse Zoey.

- Oi. Sem sono?

- Estou morta de sono, mas não consigo pregar os olhos.

- Eu também. Quer companhia?

Zoey deu um pulo para o lado, abrindo espaço para Scott à beira do lago. Ele sentou-se perto dela e olhou para a caixinha de música.

- Arlo trouxe isso para Emily – ela disse.

- Eu sei. Ele conseguiu em Corinna, na loja de um amigo meu – disse Scott. – No dia em que me ofereceu um milhão de créditos para trazer vocês até aqui.

- É... Sinto muito pelo seu pagamento.

- Não tem importância. Eu era um homem diferente na época em que aceitei o dinheiro.

Na época? Quando ele havia conhecido Crane? Uma semana atrás? Duas? Por aí. Menos de um mês havia se passado, e ele já era um Scott completamente diferente. Que ilusão mais frágil é o tempo. Ele entendia agora que a mudança verdadeira tinha mais a ver com a intensidade dos momentos do que com a quantidade de dias. Ao menos isso ele aprendera.

Zoey fechou a caixa de música, desaparecendo com a bailarina e silenciando a melodia. Deixou-a de lado na grama, puxou o cabelo para trás das orelhas e perguntou:

- Você está com medo?

- De quê?

- Do Anjo. Do que vamos encontrar em Nova York. De tudo.

As águas do lago refletiam as estrelas do céu como um espelho. Scott pensou que mergulhar ali seria o mesmo que pular de cabeça nas profundezas do espaço sideral. Donna contara que ela costumava chamar aquele laguinho de Via Láctea. Agora ele entendia o motivo.

- Estou com medo – ele disse.

Zoey enrodilhou os dedos nos dele e deitou a cabeça no ombro de Scott.

- Estou feliz por você estar aqui – ela disse.

Lá em cima, no céu da noite, um cometa traçou seu caminho entre as estrelas. Desenhou uma esteira de fogo branco e explodiu em dezenas de pontinhos brilhantes que choveram sobre o mundo. Parecia o desabrochar de uma flor.

- Caramba – disse Scott.

- Ele entrou na estratosfera e explodiu – Zoey viu como Scott a olhou e riu: – Eu sei disso porque li todos os livros que Arlo tinha na Caixa. Um monte deles era sobre Astronomia e esse tipo de coisa.

Eles não tinham como saber que, a menos de um quilômetro de onde estavam, um anjo vestido de noiva olhava o mesmo cometa explodir.

***

Margot deixava pegadas na areia ao caminhar pela praia sul de Oak Island. Ela dissera a Scott que precisava pensar, porém andava sem pensar em nada. Aprendera há muito tempo que a melhor maneira de solucionar um problema é deixá-lo quieto em seu canto. Distrair a mente, permitir que seu subconsciente trabalhe sem a influência da sua paranoia e da sua ansiedade. Era um truque difícil, mas que funcionava.

Ela escutava o som das ondas batendo contra a orla e os rochedos. Gaivotas dormiam na praia, formando montinhos brancos. Margot tirou as botas e parou na faixa de areia molhada, com as ondinhas fazendo cócegas em seus pés. Olhou para o mar. Era uma visão quase onírica: todas aquelas estrelas no alto, jorrando um brilho azul sobre as águas. O Norwegian Pearl erguia-se escuro contra o céu de luzes. Margot não tinha certeza, mas achava que podia ouvir as entranhas do navio estalando. Imaginou cadáveres se contorcendo na barriga da embarcação e sentiu um arrepio.

- Eu me lembro de quando ele chegou – disse uma voz atrás dela.

Margot sobressaltou-se. Por instinto, levou a mão à coronha da pistola em seu cinto e virou-se de supetão. Mas era só Henry. Ele estava parado na areia a alguns metros de Margot, com o rifle pendurado no ombro daquele jeito de caçador.

- Jesus, Henry – ela soltou a pistola.

- Desculpe. Não queria assustar você.

- Meu irmão mandou você ficar de olho em mim?

- Na verdade, Scott disse que você sabe se cuidar sozinha – ele sorriu. – Não, eu só gosto de andar um pouco pela praia depois que anoitece. Me acalma.

Margot prestou atenção no silêncio que os cercava. Era como estar no interior de uma bolha, com o mundo e todo o seu caos e barulheira incessantes isolados do lado de fora. Não dava para ficar mais calmo que isso.

- Entendo o que você quer dizer – ela disse.

Henry aproximou-se alguns passos e apontou para a silhueta escura do navio.

- Eu estava dizendo que me lembro de quando ele chegou – disse. – Eu era só um garotinho, mas nunca vou me esquecer desse navio vindo pelo mar e batendo contra o rochedo. Fez um barulho dos infernos. Na verdade, é a minha lembrança mais clara daquela época. Não as cidades queimando, nem as bombas ou os gritos. Mas o navio.

- Quantos anos você tinha? – Margot perguntou.

- Quando a Epidemia aconteceu? Seis, sete anos.

- A mesma idade que Scott – Margot olhou de novo para o navio que jazia nas águas. – Só uma criança.

- E você? Quantos anos tinha quando aconteceu?

- Quase treze.

- Então você também era só uma criança.

Margot soltou um risinho sem humor:

- Quem dera.

- O que isso quer dizer?

Mesmo trinta anos depois, as lembranças daquele dia em que o Exército chegara a Birmingham continuavam nítidas na cabeça de Margot. Todo mundo se espremendo nos corredores da escola enquanto as sirenes berravam; alunos, professores e funcionários lutando para sair, esmurrando e mordendo e arrancando sangue uns dos outros. Scott caído no chão, a luta que ela travara para pegá-lo pela mão e levá-lo à segurança. O cheiro de suor e medo impregnando o ar.

- Eu nunca tive uma chance de ser criança – ela falou.

Henry enfiou as mãos nos bolsos e não disse nada, esperando que ela continuasse. Margot deu as costas para as ondas, para ficar de frente com o garoto. Nem ela nem Henry viram as sombras escuras que se aproximavam deles pelo mar, movendo-se sob a água.

- Depois da Epidemia, com tudo o que aconteceu... – ela disse. – Nosso pai tinha pouco tempo para nós. Não era culpa dele. Ele era um homem importante na nova cidade que tentávamos construir e ficava o dia inteiro fora. Mamãe passava mais tempo com a gente, mas aí ela ficou doente. Então, basicamente, éramos só Scott e eu.

- E você teve que cuidar dele – disse Henry.

- O que mais eu faria? Ele é meu irmão – Margot surpreendeu-se com a amargura na própria voz. – Eu...

Um barulho atrás dela. Parecia um pé chapinhando em uma poça de chuva. Margot olhou por sobre o ombro, e tudo o que viu foi a vastidão infinita do mar, as ondas indo e vindo na escuridão. Voltou-se de novo para Henry:

- Eu fui mais do que a irmã mais velha dele – ela disse. – Fui o pai dele... Fui a mãe dele. Eu preparava o café da manhã, o almoço e a janta dele. Eu passava noites inteiras em claro quando Scott ficava doente, eu cuidava da febre dele e de suas infecções na garganta. Uma vez, ele chutou a bola no alto de uma árvore, e eu escalei aquela porra para pegá-la. Caí e quebrei o braço e duas costelas. Mas Scott? Scott conseguiu a merda da bola de volta. E eu... Eu... Eu era só uma criança. Eu estava cansada e com medo e sozinha. Mas eu tinha que proteger Scott, porque o mundo havia ido para o inferno e ele não tinha mais ninguém além de mim.

Ela levantou os olhos para o céu e piscou várias vezes para espantar as lágrimas, sentindo algumas delas escorrendo quentes por suas bochechas.

- E quando eu peço algo a ele, a única coisa que já lhe pedi em toda a minha vida, que ele não me abandone para variar, o que ele faz? Ele me dá as costas e corre para a Carolina do Norte, ou para Nova York ou, sei lá, para a porra da LUA!

A última palavra saiu num grito que ecoou alto pelo silêncio da praia. Margot nem se dera conta de que começara a berrar. Sentiu-se envergonhada e infantil, uma criança fazendo birra. Tampou a boca com as mãos e respirou fundo pelo nariz.

- Sinto muito – disse. Enxugou as lágrimas e limpou o ranho que escorria sobre o lábio superior, tentando recuperar a pouca compostura que lhe restava. – É só que... é tão injusto. É tudo tão injusto. O que aconteceu com o mundo, com as pessoas. É tudo uma grande injustiça do caralho.

Henry não tinha resposta para aquilo, e tudo bem. Margot não esperava que ele tivesse. O garoto abaixou o rosto e desenhou círculos na areia com a ponta da bota.

- Olha só – ele falou –, sei que não sou a melhor pessoa para lhe dizer isso, já que a gente só se conheceu hoje e tal, mas o que estamos tentando fazer é tornar esse mundo um pouco menos injusto. Aquela garota que vocês trouxeram, Emily, é a nossa chance. E não faremos isso porque devemos algo a esse mundo. Faremos isso porque nós merecemos esse planeta de volta. É nosso direito estar aqui.

Ele subiu os olhos da areia para o rosto dela.

- Se você não quer vir conosco, então...

Henry parou de falar. Margot viu algo brilhar nos olhos dele, algo perigoso. O garoto levantou o rifle de caça. Apontou-o para ela.

- Henry? – Margot deu um passo para trás. – Henry, o que você...

O som do tiro engoliu as palavras dela. Margot não gritou: apenas fechou os olhos enquanto o clarão do disparo preenchia todo o seu mundo.

***

Skies e Donna dividiam o quarto da casinha do lago, embora não dormissem juntos. Donna costumava ocupar a cama, e Skies o colchão que ficava do outro lado do cômodo. Já o habitat natural de Henry durante a noite era o sofá da sala.

Agora, Skies se remexia entre os lençóis, sem conseguir dormir. O colchão ficara gasto ao longo dos anos, e deitar-se nele era o mesmo que se estirar no chão: Skies podia sentir o piso duro e frio debaixo de si. Ele tentava arrumar uma posição confortável para invocar o sono quando a câimbra atacou sua perna esquerda. Os nervos da panturrilha repuxaram e queimaram. Skies xingou e sentou-se.

- Você vai ficar fazendo barulho a noite inteira? – disse Donna da cama.

- Desculpe. Câimbras – ele massageou a perna magra. Lembrava-se de quando era jovem e conseguia correr o dia inteiro debaixo do sol quente sem que seu corpo protestasse uma vez sequer. – Velhice de merda.

- Se você perguntar para um jovem – disse Donna –, ele vai lhe dizer que a juventude é uma merda.

- Jovens odeiam a juventude e os velhos odeiam a velhice – sorriu Skies. – Nós nunca estamos felizes de verdade, não é?

- Não, Russel. Nunca estamos felizes – ela suspirou. – Tente dormir.

Skies tentou e, novamente, não conseguiu. Em silêncio para não acordar Donna, ele abriu o guarda-roupa comido por traças e puxou de lá uma caixa de papelão. Fuçou dentro dela até encontrar o que procurava e saiu do quarto na ponta dos pés, encostando devagar a porta.

Na sala, Emily dormia no sofá. Skies a olhou, perguntando-se onde estava Henry. Talvez ele houvesse saído para dar um passeio: o garoto costumava fazer isso em certas noites. Escutava as vozes de Scott e Zoey vindas dos fundos da casa, onde ficava o lago.

Apertando os lábios de dor – o que o torturava agora eram suas costas em vez de sua perna –, Skies sentou-se na poltrona ao lado da estante de livros. Uma vela queimava sobre o móvel, e ele inclinou na direção da chama a fotografia que pegara na caixa do armário. Sorriu para a imagem. Ali estavam, todos eles: Skies e Arlo, Jimmy e Dylan, Donald. Todos encarando a câmera e com aquela bandeira idiota com o desenho do alienígena pendurada mais atrás.

Ele passou o polegar pelo rosto de Arlo na fotografia.

- Eu sabia que você conseguiria – disse Skies. – Até a próxima, meu amigo.

Abaixou a fotografia e olhou de novo para Emily. Não ficou realmente surpreso ao vê-la acordada, encarando-o com aqueles seus enormes olhos verdes. Verdes como os de Donald depois da África, como os de Alicia. A cor de suas íris era a única coisa que denunciava quem ela realmente era: não uma criança humana, mas algo mais. Algo além. Skies sorriu para ela e, de seu esconderijo no cobertor, ela retribuiu o gesto.

- Amanhã vai ser um longo dia, querida – ele disse. – Você devia dormir.

Emily tirou a mãozinha de dentro do cobertor e apontou para a foto de Skies. Ele a estendeu para a garotinha. Ela sentou-se no sofá e girou as curtas pernas para o chão, os dedos dos pés balançando a centímetros do piso.

- São meus amigos – ele disse. – E alguns deles, acredito, são seus amigos também.

Com a foto nas mãos, Emily apontou para Arlo. Skies riu. Emily apontou também Jimmy e Dylan. Quando a garota nasceu, eles já estavam bem mais velhos do que na fotografia, mas ela não teve dificuldade alguma para reconhecê-los. Por fim, colocou o dedo sobre o rosto de Donald e franziu a testa para Skies.

Claro. Ela não conhecera Donald. Para Emily nascer, Donald precisara morrer.

- Ele era meu irmão – disse Skies. – Depois, transformou-se em outra coisa... Mas sempre foi meu amigo. Ele é o motivo de você estar aqui hoje, querida. Sem ele, não teríamos conseguido nada.

Emily voltou a atenção para o Donald na fotografia. Passeou com o indicador pela figura dele, desenhando círculos com a unha ao redor de seus olhos. Então bateu com a palma da mão no peito uma, duas, três vezes.

Skies entendeu o que ela queria dizer.

- Isso mesmo – disse Skies. – Ele é parte de você.

Os cantos da boca de Emily subiram num sorrisinho tímido, cavando covinhas em sua bochecha. Skies continuou:

- Ele...

E o som de explosão o interrompeu.

Um kábom!, tão alto e repentino em meio ao silêncio que Skies deu um pulo no lugar e quase caiu da poltrona. Ele olhou para o teto da casa, esperando o som se repetir. O barulho ecoou e ecoou pela noite na forma de um zumbido abafado, até desaparecer.

Aquela merda tinha sido um tiro?

Skies ficou de pé, ainda olhando para o teto como alguém à espera de um trovão.

- Pareceu um... Emily?

Emily tinha se levantado do sofá. O cobertor se abarrotara em torno de seus pés e um fio amarelo de urina escorria por sua perna esquerda. Estava com as mãos fechadas em punhos nas coxas, amassando entre os dedos a foto de Skies, e tremia da cabeça aos pés. Olhava para a porta de entrada da casa, a boca abrindo e fechando sem produzir som. Uma lágrima escorreu por sua bochecha direita e pingou.

De súbito, Skies entendeu o que estava acontecendo.

Ah, Deus, não. Foi tudo o que teve tempo de pensar antes que uma explosão de luz branca tomasse conta de sua cabeça.

Olá, Russel.

Uma voz.

Você não veio me encontrar, então eu encontrei você.

***

Para Frank O'Malley, Oak Island parecia deserta. Um pedaço de terra escuro e abandonado flutuando no mar.

Ele estava de pé na ponte destruída que ligava o continente à ilha. Abaixo dele, os barcos, jet-skis e lanchas dançavam com o pulsar das ondas. Frank olhava para Oak Island, procurando algum sinal de vida, e via somente árvores que se curvavam ao vento e casas de veraneio abandonadas.

A coisa vestida de Alicia parou ao lado dele.

- Parece que não tem ninguém na ilha – disse Frank. - E se ela já tiver ido embora?

- Se ela tivesse feito isso, então não estaria mais protegida pela água, e eu conseguiria senti-la – respondeu a coisa vestida de Alicia. – Ela está lá.

- Como vamos atravessar? – ele apontou para o ponto em que a ponte desabara, interrompendo o caminho para Oak Island. – Não dá pra nadar. Morreríamos de frio nessa água.

- Não vamos precisar nadar.

- E você vai fazer o quê? Voar até a ilha?

Ela girou os olhos verdes para ele e sorriu.

- Voar? Não seja bobo, Frank. Isso seria loucura.

Sem dizer mais nada, ela deu as costas para Oak Island e voltou o caminho todo pela ponte. Frank hesitou um segundo e a seguiu. Ele estacionara o antigo Honda Civic 2012 perto de um quiosque cujo telhado desmoronara há eras. A coisa vestida de Alicia parou ao lado do carro, plantou as mãos no capô e içou-se para cima.

O primeiro pensamento de Frank foi Ela vai amassar meu carro. O que, claro, era a coisa mais idiota do mundo para se pensar na atual situação. A coisa vestida de Alicia continuou sua escalada, subindo pelo vidro do para-brisa até o teto do Honda Civic. Uma vez lá em cima, ela ficou de pé. A luz da lua brilhava em seu cabelo dourado. O soprar do vento inflava seu vestido branco, fazia a bainha da roupa farfalhar contra seus tornozelos. Ela ergueu o rosto para o céu estrelado e fechou os olhos.

- O que você está fazendo? – perguntou Frank.

- Olhe bem – ela disse. – Olhe para mim. Todos vocês, todos vocês, olhem para mim. Venham me encontrar.

E eles vieram. Seus filhos e filhas, irmãos e irmãs, mães e pais. Vieram às centenas, aos milhares. Saíam de trás das construções na praia, de entre as árvores, se arrastando pela estrada. Eram vomitados pelas sombras. Homens, mulheres e crianças, jovens e velhos. Seu Povo. Frank nunca vira tantos reunidos de uma só vez. Eles gemiam e choravam e sussurravam. Formavam um círculo em torno do Honda Civic, mais e mais a cada segundo, fechando-se em torno do carro. Olhos vazios e cheios de sangue, rostos comidos por feridas. Aqueles que tinham escutado a Palavra, os batizados pelo Molec. Frank sentiu medo, um quase pânico que o fez ter vontade de sair correndo para o mais longe possível. Enquanto aquelas coisas se aproximavam, uma maré escura com cheiro de morte e doença, Frank tateou atrás da maçaneta da porta do Honda. Abriu-a e caiu sobre o banco do motorista, batendo a porta com força e baixando a tranca.

Do lado de fora, o Povo dela parou. Eles tinham os rostos erguidos para a coisa em cima do carro, fitando-a com olhos vazios. Sussurravam palavras que faziam Frank pensar no idioma dos Homens Magros. Ele tampou os ouvidos, mas não conseguiu fechar as pálpebras. Ele queria olhar. Precisava olhar.

Olhe para mim. Venha me encontrar.

A coisa vestida de Alicia desceu do carro: escorregou pelo para-brisa, parou no capô e pulou para o chão. Olhou para Frank dentro do veículo e sorriu. Viu só? Viu o que eu sei fazer? Eles são meus. Todos eles são meus.

Assim como você é meu.

Do círculo formado pelo Povo dela, uma figura deu um passo à frente. Era pequena, só uma criança. Uma garotinha de uns 8 anos, talvez menos. Seus olhos eram mortos como os dos outros, como se seu cérebro fosse uma tela em branco: sem pensamentos, imagens, lembranças ou vontades. Apenas um copo de vidro vazio à espera de ser preenchido. A menina vestia uma saia azul e uma blusa branca com o desenho de um livro aberto no lado esquerdo do peito, com as palavras Escola Municipal de Boston. Provavelmente, a roupa que usava no dia em que fora infectada pelo Molec. Tinha uma sapatilha no pé direito: o calçado do outro pé desaparecera.

A coisa vestida de Alicia inclinou-se até deixar o rosto na mesma altura do da garotinha. Segurou-a pelas bochechas e beijou sua testa.

- Obrigada por vir.

Frank assistia a tudo, paralisado. A coisa vestida de Alicia soltou o rosto da garotinha e uniu as mãos em concha, aproximando as palmas da boca como alguém faria ao beber água de um rio. O corpo dela convulsionou e Frank achou que ela fosse vomitar. Mas o que saiu de sua boca foi um pequeno orbe de luz verde. Ela fechou os dedos em torno daquilo e disse para a garotinha:

- Receba a minha Palavra.

A coisa vestida de Alicia separou as mãos e Frank viu que a esfera que ela cuspira era, na verdade, uma borboleta. Uma pequena borboleta que não era exatamente sólida: parecia ser feita de algo que ficava no meio do caminho entre o estado gasoso e o líquido. Era vapor, mas tinha a consistência de uma gota de mercúrio em um termômetro. Era difícil olhar para ela. Confundia a mente. Emanava um brilho verde, e toda vez que batia suas asas, fazia chover nuvens de partículas cor de esmeralda.

A garotinha abriu a boca. A borboleta voou, desenhando círculos no ar, deixando atrás de si uma trilha de migalhas verdes. Pousou nos lábios na menina. Tateou seu caminho, tocando os dentes da criança com suas pequenas patas, balançando as antenas, e flutuou para a língua dela. A menina fechou a boca e engoliu.

Um segundo se passou sem nada acontecer. Dois segundos, três. A garotinha fechou os olhos. Quatro segundos, cinco. Seis. Quando a menina abriu as pálpebras, seus olhos estavam verdes.

Verdes como os olhos da coisa em Alicia.

- Agora vão – disse a coisa vestida de Alicia. – Todos vocês. Vão e façam a minha vontade.

Movendo-se em sincronia como os ponteiros de um relógio, o Povo dela virou-se na direção da ilha e começou a andar. A garotinha que engolira a borboleta ia atrás, separada dos demais. Eles chegaram à praia, uma multidão movida por uma só vontade, seguindo uma só Palavra. Frank achou que eles fossem parar quando atingissem o mar, mas não: continuaram em frente, entrando na água cuja temperatura devia estar abaixo de zero sem nem se importarem com o frio. Submergiram nas ondas.

Nadavam na direção de Oak Island.

- Ah, Alicia – disse Frank. – O que você fez, querida?

***

O som do disparo explodiu na noite. Margot fechou os olhos e se agachou: a bala passou tão rente ao seu rosto que ela sentiu o deslocamento quente do ar em sua bochecha esquerda. Escutou um barulho atrás de si, que lembrava uma bexiga cheia d'água estourando, e um líquido quente choveu sobre seus cabelos e costas.

Alguém segurou sua mão. Ela abriu os olhos. Era Henry, o rosto colado no dela, gritando algo que Margot não escutava. A explosão do rifle a deixara surda: era como estar com a cabeça dentro d'água, os sons chegando em ecos abafados e submarinos. O clarão de flash branco causado pelo disparo ainda manchava sua vista. O mundo rodava. Margot sentia-se uma bailarina de brinquedo girando sem freio sobre seu próprio eixo.

- O quê? – Margot gritou para Henry, sem escutar a própria voz. – Não entendi!

Henry apontava para algo atrás dela, e Margot girou. A primeira coisa que viu foi um corpo aos seus pés: uma mulher usando um vestido vermelho de bolinhas brancas, cujo pescoço terminava em fiapos de pele. Não havia uma cabeça, e Margot entendeu o que era o líquido quente que jorrara em suas costas. O sangue tingia a areia: sob a luz da lua, os grãos brilhavam como pequenos rubis. Margot tropeçou para trás e Henry a segurou pelos cotovelos.

E aí ela viu os monstros.

Eles saíam do mar aos montes, figuras negras e maltrapidas, com roupas rasgadas e rostos devorados por feridas e veias escuras. Olhos vazios fixados nela. Eles se arrastavam pela areia na direção de Margot e Henry. Dezenas, talvez centenas daquelas coisas. Os mesmos monstros que ela encontrara na estrada há tanto tempo, quando ela e Scott eram apenas crianças fugindo de Birmingham; os mesmos monstros que queimaram Corinna. Que mataram Andy.

- ... SAIR DAQUI! – gritava Henry na orelha dela.

Isso a trouxe de volta. Margot puxou a pistola do cinto, apontou e segurou a respiração, exatamente como o pai a ensinara a fazer. Suas mãos não tremiam, o que era bom. Ela não sentia medo, o que era melhor ainda. Apertou o gatilho duas vezes, e um número igual de clarões carimbou a noite. Boom! Boom!, um atrás do outro. Margot viu um homem de terno rasgado e uma mulher com uniforme de enfermeira desabarem sobre a areia. O resto continuou vindo.

- São muitos! – Henry a puxava pelo cotovelo. – Margot, são muitos!

O cheiro acre da pólvora se misturava com o aroma de sal do mar. Margot disparou de novo e deixou que Henry a puxasse. Correram das coisas, direto para a floresta e a casinha de lago mais além. Margot tropeçava nos montes de areia, com a mão suada fechada na de Henry. O garoto parou apenas uma vez para girar, erguer o rifle e atirar: novamente, o som do disparo foi como um soco nos tímpanos de Margot. O zumbido que abafava todos os sons retornou ao seu mundo.

As coisas se fechavam em torno deles, como uma maré escura. Vinham em ondas, e o fedor era terrível: aquelas pessoas não apenas pareciam mortos, como também cheiravam como mortos. Margot pensou em Scott e os outros, sozinhos na casa do lago. Eles não tinham armas lá, tinham? Estariam indefesos se os monstros...

Henry parou de correr de supetão. Na velocidade em que estava, Margot não teve tempo de frear e colidiu de nariz contra as costas dele. Escutou a cartilagem estalar. Sangue quente escorreu. Que merda? Ela tampou as narinas com a mão e, através do véu de lágrimas, viu os monstros saindo da floresta à frente deles. Eles se arrastavam aos montes para fora das sombras das árvores. Henry e Margot estavam cercados.

Henry ergueu o rifle, mirou, mas não atirou.

- O que a gente faz? – ele disse.

Margot não sabia. Matar todas aquelas coisas estava fora de questão: ela e Henry tinham um número limitado de balas e, sinceramente, morreriam antes que tivessem a chance de disparar todas. Então o quê?

Então nada. É isso. Acaba aqui.

Ela achava que restavam quatro balas no pente da pistola. Três para os monstros, e o quarto disparo para si própria. Não tinha a mínima intenção de ser feita aos pedaços naquela praia, trucidada viva e aos berros. Bastaria um tiro bem dado na têmpora e aí então ela acordaria às margens do rio Caronte, aonde o barqueiro iria...

Merda, o barco.

Henry atirou com o rifle. A criatura mais próxima deles rodopiou, lançando um monte de areia para cima, e desabou. Os outros continuaram vindo, famintos, olhando para Henry e Margot com seus olhos vazios de peixes. Ela agarrou a mão de Henry e o puxou na direção do mar.

- O que você tá fazendo? – Henry gritou – Não tem saída por aí!

Tinha, sim. Ela redobrou a força com a qual puxava o garoto. Correram pela praia sul, para o ancoradouro de madeira onde haviam desembarcado mais cedo. Henry viu o pequeno barquinho no mar e entendeu. Parou de tentar resistir ao puxão de Margot e colocou-se a correr também. Atrás deles, a onda de monstros se avolumava.

Estavam quase no barco quando a dor cravou os dentes no pé direito de Margot. A mordida foi tão repentina que ela nem gritou: perdeu o ar e caiu para frente, rolando pela areia. Henry agachou-se ao seu lado, puxando-a para cima, gritando para ela se apressar, porém Margot não conseguia firmar o corpo. Sempre que tocava o chão com o pé direito, um raio de agonia subia por sua perna até a virilha, fazendo-a berrar.

- Ah, merda – disse Henry, olhando para o pé dela.

Havia um caco de vidro cravado ali. Margot pisara em uma garrafa de cerveja, jogada na praia por algum idiota décadas atrás, antes mesmo do Molec aparecer. O caco entrara pela sola de seu pé, atravessara músculos e carne, e saíra pelo calcanhar na forma de uma ponta farpada e brilhante de sangue.

O barco estava a menos de vinte metros. Os monstros, a menos de dez.

Não daria tempo.

***

Zoey quase pegava no sono com a cabeça no ombro de Scott quando o barulho do tiro chegou até eles. Ela voltou do limbo entre realidade e mundo dos sonhos com um pulo, agarrando a mão de Scott.

- Que foi isso?

- Não sei – Scott ficara de pé. Olhava para o alto, como se procurasse nas estrelas a origem do barulho. – Acho que foi um tiro.

- Um tiro?

- É – ele pensou em Henry dizendo que iria cuidar de Margot. Henry com seu inseparável rifle de caça. – Margot.

Ele correu para dentro da casa, abrindo a porta com tanta violência que quase arrancou a maçaneta. Zoey o seguiu, perguntando o que estava acontecendo, mas Scott não tinha tempo de explicar. Pensava no que Margot lhe dissera no dia em que ele a reencontrara no shopping perto de Raleigh, sobre como ela simplesmente sabia que Scott passaria por lá e por isso pichara o nome dele naquele outdoor.

Ele simplesmente sabia que Margot estava em perigo. Sentia isso em seus ossos, no nó que se formava em sua garganta. Entalado ali como uma bolinha de gude.

Scott passou em disparada pela cozinha e entrou na sala, então estacou. Emily e Skies estavam ali, porém havia algo de errado com o velho. Ele tinha caído de joelhos no tapete, com as mãos apertando a cabeça e a boca aberta no meio de um grito silencioso. As veias de sua testa saltavam sob a pele, sangue escorria de suas narinas e os olhos haviam se esbugalhado: mais um pouco e pulariam das órbitas.

Scott deu um passo na direção de Skies. Então dedos que eram como uma rede de arame farpado fecharam-se em sua mente e ele não conseguiu mais se mover.

***

Dentro da cabeça de Skies, todas as coisas giravam.

Tudo o que ele era e um dia tinha sido.

Cada pensamento que já tivera, cada desejo que alimentara e memória que conservara, tudo lhe era arrebatado. O Anjo roubava todas as coisas e não deixava nada para trás. Lembranças que Skies sequer sabia que tinha – ele no útero de sua mãe, ainda ligado a ela pelo cordão umbilical; o rosto redondo de um Donald de quatro anos debruçando-se sobre ele no berço; o gosto quente do leite materno saído direto do seio de Elizabeth Skies enchendo-lhe a boca – estavam expostas à carne viva. O Anjo entrara e agora corria seus incontáveis dedos por sua mente, perscrutando todos os cantos empoeirados, arrombando todas as portas trancadas e espiando todos os segredos.

Não tente lutar, Russel. Será mais fácil se você apenas deixar acontecer.

Skies lutou. O Anjo continuou cavando e cavando.

Deixe-me entrar, Russel.

Ele não queria deixar. Tentava resistir, expulsar os milhares de dedos que reviravam sua mente, mas era inútil: por mais que lutasse, aquela coisa continuava estendendo seus tentáculos para os confins de sua psique. Faltava muito pouco: logo, ela tomaria tudo. Depois disso, Skies seria apenas um monte de pele grudada aos ossos, sem pensamentos, lembranças ou vontade. Uma casca vazia, uma ostra sem pérola. Como a mãe.

Mas não precisa ser assim. Se você me aceitar. Se você olhar para mim.

- Não – Skies cerrou as pálpebras. – Não quero, não vou.

Então eu vou tomar. Vou tomar tudo.

Os dedos do Anjo avançaram mais uma vez... e pararam. Depois, recuaram, contorcendo-se para longe da mente de Skies como um animal da escuridão fugiria da luz do sol.

O que é isso? O que você está fazendo?

Skies sentiu o controle do Anjo sobre ele diminuir. As correntes de ferro que haviam se fechado em sua mente afrouxaram. E então uma voz falou. Não a voz do Anjo, mas uma voz diferente, tão reconfortante quanto um banho quente em um dia gelado de inverno.

A voz de uma garotinha:

Vá embora. Você não é bem-vinda aqui.

Emily.

***

Dentro do Honda Civic 2012, Frank O'Malley olhava para a coisa vestida de Alicia. Ela estava de pé na areia da praia, banhada pela luz da lua, com o rosto voltado para o céu e os olhos fechados. Suas pálpebras se agitavam e uma película de suor cobria sua testa. Seus dedos abriam e fechavam, contorciam-se como se ela tocasse um piano invisível. Havia um sorriso em seus lábios.

Frank sabia que ela estava ali apenas fisicamente. A mente da coisa em Alicia estava na ilha, dentro daquela garotinha que engolira a borboleta cor de esmeralda. Pela primeira vez em trinta anos, a coisa vestida de Alicia se encontrava ocupada demais para prestar atenção em Frank. Esquecera-se dele.

Ele não pensou. Se pensasse, hesitaria; se hesitasse, perderia a coragem. Frank abriu o porta-luvas do Honda e pegou a Taurus 889 que guardara ali. A mesma arma que planejava usar para tirar a própria vida. E Frank tinha a intenção de fazer exatamente isso muito em breve: mas, antes, faria algo que deveria ter feito há 30 anos.

Frank abriu a porta do Honda e saiu para a noite. O vento açoitou seu rosto com tapas gelados. A coisa em Alicia não o viu se aproximando com a Taurus erguida, apontada para a cabeça dela. Ele libertaria Alicia e, em seguida, libertaria a si mesmo. E que eles dois se encontrassem no que quer que existisse do outro lado da cortina.

Desculpe ter demorado tanto, Alicia.

Frank removeu a trava de segurança da arma, colocou o dedo no gatilho e, antes que pudesse apertá-lo, a coisa vestida de Alicia abriu os olhos. Caiu de joelhos na praia e começou a esmurrar a areia.

- Não! – ela gritava. – Não, sua putinha, não! NÃO!

***

O Anjo investiu novamente contra a mente de Skies, só que agora seus dedos não pareciam mais tão longos. Ela não conseguia entrar outra vez: fora expulsa. Um rugido encheu a cabeça de Skies, um som alto que fez seus dentes vibrarem e ateou fogo em seus neurônios. Ele entendeu que aquele barulho era o Anjo gritando em fúria.

QUEM VOCÊ ACHA QUE É? VOCÊ NÃO PODE FAZER ISSO.

E Emily respondeu no mesmo tom calmo que usara para falar da primeira vez:

Vá embora. Vá embora e não volte mais.

De novo, o Anjo berrou em fúria. De novo, ela investiu contra a psique de Skies. E, de novo, foi rechaçada por Emily. Não! Não, sua putinha, não! NÃO! Com um último grito de frustração, o Anjo saiu da cabeça de Skies: as amarras que apertavam a mente dele se desfizeram, e seus pensamentos eram seus outra vez. Skies sentiu-se flutuando, suspenso no escuro do espaço, um pequeno corpo celeste boiando entre as estrelas infinitas. Algo frio chocou-se contra suas costas, bateu em sua nuca. Dois faróis de luz verde fulguravam acima dele.

Skies abriu as pálpebras. Estava caído de costas na sala da casinha do lago, o teto lá em cima girando e girando. Os pontos de luz verde entraram em foco e ele reconheceu os olhos de Emily. A garotinha se debruçava sobre ele, balançava seus ombros. Acorde, acorde! Skies segurou a mão dela. Ela era quente, tão quente.

- Obrigado – ele sussurrou.

Outras duas pessoas se debruçavam sobre ele agora: Scott e Zoey. Eles o seguravam pelos braços e o puxavam de pé, gritando uma porção de perguntas que ele não entendia. Skies tentava dizer a eles que nada daquilo tinha importância, que eles todos precisavam correr dali porque o Anjo estava a caminho, porém sua língua era um tapete sujo enrolado dentro de sua boca. A mente continuava fragilizada e esfolada do ataque que sofrera. O quanto ela descobriu?, pensou Skies. O quanto ela sabe agora?

Donna veio correndo do quarto, com a .38 nas mãos. Juntos, ela e Scott sentaram Skies na poltrona. Zoey tinha pegado Emily no colo e balançava a menina para cima e para baixo, beijando sua cabeça e dizendo que tudo ficaria bem. A criança lutava para se desvencilhar da mãe, chutando e esmurrando.

- Emily! – dizia Zoey. – Emily, pare com isso! Acabou!

A garota escancarou a boca num grito sem som. Com uma mão ela segurou o rosto de Zoey e com a outra apontou para a porta de entrada da casa. Skies seguiu o dedo de Emily. Seu coração congelou.

- Russel, o que foi? – Donna balançava a mão dele. – Fale comigo.

A maçaneta da porta girou, girou, girou... Skies escutou o click! da tranca. Uma vez eu fugi de você, pensou. Fugi para Samarra, e agora você veio me encontrar.

- É tarde demais – ele disse.

A porta se abriu e o anjo vestido de noiva entrou.

***

Margot apoiou-se nos ombros de Henry e tentou se levantar. Não conseguiu. O caco de vidro devia ter rompido algum tendão importante em seu calcanhar e era impossível ficar de pé. Os monstros estavam mais perto do que nunca; o barco, tão longe que parecia em outra dimensão.

- Não dá – disse Margot. – Vá você.

- Nem pensar – disse Henry.

Ele pendurou o rifle no ombro – perdendo preciosos dois segundos, tempo que os monstros usaram para chegar ainda mais perto – e pegou Margot no colo. Ela passou os braços pelo pescoço dele e Henry correu na direção do barco. Mesmo com o sacolejar da corrida, Margot apontou a pistola para as criaturas e disparou os últimos três tiros. O primeiro acertou a areia, levantando uma nuvem poeirenta de grãos. As outras duas balas cravaram-se no peito de um homem gordo e nu que os perseguia pela praia: ele tombou de joelhos, quase em câmera lenta, depois de rosto.

Os outros subiram sobre ele e continuaram atrás de Margot e Henry.

Por que eles não correm?, Margot olhou para os monstros que se arrastavam pela praia. Eram centenas, porém não tinham pressa alguma para alcançar ela e Henry. Já teriam nos alcançado se quisessem. A não ser que...

Sua linha de pensamento foi cortada quando Henry a jogou dentro do barco. Ele fez isso sem a menor cerimônia: Margot caiu de costas contra a amurada, espirrando água para o alto, e estendeu as mãos para Henry. O garoto segurou os dedos dela e Margot puxou-o.

- Mantenha-os longe – Henry jogou o rifle no colo de Margot. – Vou dar partida nesta porcaria.

Enquanto Henry puxava a cordinha do motor, Margot fazia mira com o rifle de caça. Nunca atirara com uma arma daquelas antes e imaginava que o coice devia ser fortíssimo. Apoiou a coronha com firmeza no ombro, mantendo a clavícula a salvo do recuo do disparo: assim, não corria o risco de quebrar ou deslocar um osso.

Na praia, os monstros tinham ultrapassado a linha da maré e entravam no mar.

- Henry, anda logo com isso – ela disse.

- Estou... tentando!

Um dos monstros mergulhou nas ondas, sumiu nas águas e emergiu a três metros da pequena embarcação. Margot atirou, trincando os dentes com o barulho e o recuo do rifle. A cabeça da criatura desapareceu numa nuvem vermelha e um pedaço branco de seu crânio ricocheteou contra a amurada do barco.

- Henry? – Margot gritou.

- Pega, filho da puta! – Henry puxava a cordinha do motor. Suor pingava de seus cabelos, empastava suas roupas. – Pega!

Outra daquelas pessoas deformadas pulou no mar e veio batendo os braços na direção do barco. Uma mulher que um dia fora loira, mas cujos cabelos agora lembravam algas podres e amarelas. Margot esperou que ela alcançasse a amurada e baixou a coronha do rifle com o máximo de força que conseguiu.

Um cráck! de ovo quebrando e a mulher afundou na água. Uma porção de cabelo amarelo misturado com sangue e pele ficara presa à coronha do rifle. Margot puxou o monte de sujeira, jogou-o no mar e tornou a mirar.

Pelo menos dez monstros pulavam na água agora.

- Henry!

- PEGA, PORRA!

A cordinha arrebentou nas mãos de Henry: a inércia jogou-o para trás e ele caiu contra a amurada, quase virando o barco. O motor pegou com um rugido. Margot nunca escutara um som mais bonito.

- Isso! – Henry correu para o manche. – Obrigado, Deus, obrigado!

Deixe para agradecer o cara quando estivermos seguros, pensou Margot, abaixando o rifle conforme o barco se afastava da praia. Alguns dos monstros os seguiram pelo mar, nadando atrás deles, mas Margot e Henry tinham a velocidade do seu lado: o motor os levou para longe, até que as criaturas que os perseguiam não passarem de pequenos pontinhos escuros na noite, tão pequenos que Margot poderia segurá-los entre as almofadas do indicador e do polegar como uma criança brincando de ser gigante.

- Que merda foi aquela? – disse Henry. Ele ria ao mesmo tempo em que chorava. – Jesus. Meu Deus. Que merda foi aquela?

Margot escorou-se na amurada e deixou-se escorregar sentada no chão do barco. Escutava o coração esmurrar as costelas, batendo em sincronia com o sangue que pulsava ao pé de seus ouvidos. Estendeu a perna direita à frente, sem coragem de encarar o caco de vidro que dilacerara seu calcanhar. Em vez disso, olhou os monstros na praia. Incontáveis silhuetas escuras espalhadas pela areia

Eles não estavam atrás de nós, não de verdade, Margot olhou para além dos monstros, para as árvores que escondiam a casinha do lago.

Ah, Scott.

***

Depois, Scott não conseguiria dizer quanto tempo duraram os acontecimentos que se desenrolaram na casa do lago. Horas, embora não pudesse ter sido mais do que alguns minutos. Independente disso, foi naquele momento que Scott entendeu, realmente entendeu, que havia algo além desse mundo. Algo que se escondia atrás da cortina, no espaço escuro e frio que separa essa galáxia da próxima. Outro mundo, talvez. Ou outros.

Ele não conseguia se mover. Tinha consciência de três coisas: da mão de Zoey na sua, a jovem também incapaz de se mexer; de Skies de joelhos no chão da cabana e gritando de dor e medo; e dos dedos que haviam se fechado em sua mente como uma armadilha de urso, cravando os dentes em seus pensamentos e memórias.

Uma corrente de lembranças fora desencadeada dentro dele. Lembranças que remontavam da sua mais tenra infância. Neve, canções de ninar, uma bolinha de gude entalada em sua garganta, luzes de Natal, o autorama que o pai construíra na garagem, o balanço de pneu na árvore do jardim de sua casa. Todas essas memórias estavam enfileiradas como livros em uma estante, e os dedos puxavam uma por uma, lendo-as e estudando-as. Isso não é seu, Scott queria gritar. Isso é meu.

Em seguida, uma voz. A voz de uma garotinha, dizendo para Scott não ter medo e que logo tudo ficaria bem. Os dedos que reviravam seus pensamentos e lembranças se afastaram, e ele ouviu um berro de fúria que o assombraria até o último de seus dias. E então ele estava livre. A coisa tinha ido embora.

Skies caiu para trás. Emily – Emily, que expulsara o invasor da mente de Scott, que lhe dissera para ser corajoso e verdadeiro – correu até o velho e ficou chacoalhando-o pelos ombros. Sangue escorria do nariz da garotinha, e ela fizera xixi na calça: uma mancha escura se abria entre suas pernas, sujando seu vestido com estampas de morangos. Scott demorou um segundo para entender que podia se mover outra vez.

Skies.

Ele agachou-se ao lado do velho, no mesmo instante em que Donna saía do quarto, apertando um roupão em torno do corpo e com uma arma nas mãos.

- O que aconteceu?

- Skies, ele... – que Scott fosse arrastado vivo para o inferno se soubesse a resposta. – Ajude-me a sentá-lo.

Juntos, ele e Donna levantaram Skies e o sentaram na poltrona. Zoey tinha pegado Emily no colo, e a garotinha lutava para dizer algo sem usar palavras: apontava para a porta de entrada, o medo descolorindo suas faces. Donna balançava a mão de Skies, chamando o nome dele.

O velho tentou falar algo. As palavras não saíram.

- Skies? – disse Scott. – Skies?

Skies fechou os olhos e, com esforço, conseguiu dizer:

- É tarde demais.

Foi aí que a porta se abriu, revelando a garotinha. Ela devia ter a idade de Emily e era apenas um pouco mais alta, vestida com um uniforme surrado de escola. Uma de suas sapatilhas estava faltando. Ela rolou os olhos verdes e cravou-os em Emily no colo de Zoey. Seus lábios subiram num sorriso.

- Ah, aí está você – ela disse.

É ela?, Scott pensou. Ela é o Anjo? A garotinha entrou na casa como se fosse uma convidada.

- Olá, Alicia – disse Skies. – Faz tempo, querida.

A garotinha parou diante da poltrona em que Skies se sentava, lutando para se manter consciente. Passou pela cabeça de Scott pular sobre ela naquele momento, derrubá-la e estrangulá-la, mas algo lhe dizia que isso era um erro. Os dados haviam rolado, coisas além de sua compreensão estavam em movimento e tentar algo seria tão eficiente quanto tentar impedir os planetas de se aliarem.

- Oi, Russel – a garotinha segurou uma das mãos dele. – Você está ótimo.

- Gentileza sua dizer isso, mas não é verdade. O tempo foi cruel comigo. Sabe, nem todos somos imunes a ele.

Pelo canto do olho, Scott viu Zoey dar um passo para trás, e depois outro. Bem devagar, arrastando os pés. Corra, ele pensou. Corra, dê o fora daqui com Emily.

- É, o tempo não é amigo de ninguém – a garotinha acariciou as rugas no rosto de Skies. – Eu sempre soube que encontraria você antes do fim.

- Você me deixou viver – disse Skies.

- Deixei, não foi? Deixei mesmo. Sabe por quê?

Skies assentiu:

- Para que eu olhasse para você.

E a garotinha sorriu:

- E agora você olhou.

Donna, que até então assistia à cena em silêncio, ergueu a pistola. Sem nem desviar os olhos de Skies, a menina estendeu a mão, com a palma aberta voltada para Donna. A arma dançou nos dedos de Donna: os braços dela abaixaram como se puxados na direção do chão por cordas invisíveis.

- Donna – a garotinha virou o rosto para olhá-la. – Gostou do presente que eu mandei? Eu disse que iria matá-lo para você, não disse? Aquele que te abandonou – ela soltou a mão de Skies. – Entregue a arma para mim.

Donna sacudiu a cabeça.

- Não.

- Por favor. Ou vou acabar machucando você.

Ainda assim, Donna não entregou. Não por vontade própria, pelo menos. Seu corpo inteiro tremia com o esforço para resistir ao comando da garotinha, mas era como se arma em suas mãos fosse atraída por um imã gigantesco. Donna estendeu a pistola e deixou-a cair na palma da menina.

- Obrigada, Donna – ela olhou para a arma, girando-a nas mãos como uma criança admirando o brinquedo que encontrara debaixo da árvore de pisca-piscas em uma manhã de Natal. – Mas o Filho do Homem lhe ordenou: "Embainha a tua espada, pois todos os que lançam mão da espada pela espada morrerão".

E atirou contra a cabeça de Skies.

Zoey gritou. Donna gritou. E Scott teria gritado se o choque não houvesse roubado sua voz. O som do disparo foi alto no espaço fechado da sala: o cheiro de pólvora subiu e o corpo de Skies deu um tranco para trás. Sua nuca desapareceu e um punhado de cérebro misturado com sangue e pedaços de ossos voou no encosto da poltrona. Os olhos de Skies permaneceram abertos por um segundo ou dois, depois suas pálpebras se fecharam e sua cabeça tombou para frente, o queixo encostando no peito.

Scott pensou: Não.

Pensou: Ela vai matar todos nós.

Pensou: Preciso tirar Emily daqui.

E, de repente, não havia mais tempo para pensar. Não havia mais tempo para nada, apenas para agir. Ele girou nos calcanhares, apostando corrida contra a garotinha que erguia a arma apontada para Emily. Aconteceu muito, muito rápido. Como um acidente de carro, ou um infarto fulminante, ou alguma dessas coisas que, depois que terminam, deixam todo mundo pensando: "Nós nem vimos de onde veio".

Scott gritou para Zoey correr com Emily. Os olhos da garotinha com a arma reviraram para dentro das órbitas: seus lábios repuxaram, expondo os dentes sujos.

- FRANK, NÃO! – a garotinha gritou e desabou no chão.

Mas não sem antes apertar o gatilho da pistola.

***

Frank O'Malley ficou surpreso demais para reagir quando a coisa vestida de Alicia caiu de joelhos na areia. Ela esmurrou e esmurrou, e ergueu os olhos para Frank. Ele escondeu a arma nas costas, mas nem precisava ter feito isso: a coisa em Alicia estava enfurecida e sequer notou a Taurus nas mãos dele.

- Aquela putinha! – ela gritou. – Aquela putinha me expulsou! Eu vou arrancar o coração dela! Eu vou comer ela!

Ela ficou de pé e deu dois passos para cima de Frank. Ele recuou diante da fúria que viu no verde dos olhos dela, tropeçou nos próprios pés e caiu de bunda na areia. A Taurus escapou de suas mãos e rolou pela praia.

- Mas ela não vai me vencer – a coisa vestida de Alicia respirou fundo. Seus cabelos caíam em seu rosto, formando uma mortalha de sombras sobre suas faces. – Ela é só uma criança, só isso.

- Alicia...

- NÃO ME CHAME DE ALICIA! – ela gritou. Frank se arrastou pela areia para longe dela, tateando às cegas atrás da arma. A coisa voltou-se para Oak Island. – Quer brincar comigo, Emily? Então vamos brincar.

E foi para longe outra vez. Frank ficou de quatro na areia, procurando pela porcaria da arma. Estava escuro demais para enxergar, mesmo com o brilho das estrelas. Por favor, Deus. Por favor. Mas nada da Taurus.

- Ah, aí está você – disse a coisa vestida de Alicia.

Frank mordeu a mão para conter um grito de frustração e raiva. Logo, a coisa vestida de Alicia mataria a criança e ele perderia sua única chance. Era um inútil. Não conseguia salvar Alicia, não conseguia salvar a si mesmo e não...

Seus dedos tocaram algo frio. Metal.

A coronha da Taurus.

Ele agarrou a arma e ficou de pé. Estava escuro, é verdade, porém o vestido branco da coisa em Alicia se destacava nas trevas como um farol. Frank apontou a Taurus para ela e gritou:

- EI!

Ela virou o rosto para ele. Primeiro, enfurecida por ter sido interrompida. Depois, com medo. Vira a arma nas mãos de Frank. Seus olhos verdes se arregalaram.

- Você devia ter deixado minha Alicia em paz – ele disse.

A coisa estendeu os dedos em garra na direção dele:

- FRANK, NÃO!

Tarde demais. Frank O'Malley atirou contra a coisa vestida de Alicia, e não errou: a bala a atingiu na testa, bem entre os olhos verdes. O impacto a jogou para longe e ela caiu de costas na areia. Como um anjo expulso do Paraíso caindo na Terra.

***

Sangue espirrou no rosto de Scott. Ele olhou para Zoey e Emily. A garotinha parecia bem, porém havia algo de errado com Zoey.

Metade da sua cabeça estava faltando.

- Scott? – ela o fitava com um só olho. O esquerdo. O direito se transformara em uma massa sangrenta de carne crua. – Emily... está...

Ela bambeou, para frente e para trás como uma trapezista em uma corda, e desabou de costas. Emily escapou de seus braços e rolou pelo chão, batendo contra a parede. O choque abandonou o corpo de Scott, dando lugar à adrenalina. Ele se ajoelhou ao lado de Zoey.

- Zoey. Ah, Zoey.

O olho único dela rolou, fixou-se no rosto de Scott por um breve segundo e voltou a rodopiar. Scott não sabia o que fazer. Acariciou o ombro dela, sujando os dedos com pedaços de miolos. Emily vinha de quatro para perto da mãe, chorando um choro silencioso.

- Não, meu anjo – Scott puxou a criança para o colo, apertando a cabecinha dela contra o peito. – Não olhe.

- Mamãe disse que a água está ruim – disse Zoey. As palavras saíam emboladas de sua boca. – Cadê a minha blusa, mamãe? Está frio.

Emily tentou virar a cabeça, e Scott não deixou. Sem soltar Emily, ele tirou o paletó e dobrou-o em um travesseiro. Devagar, colocou-o sobre o que restava da cabeça de Zoey. Ele sempre ouvira dizer que não se deve mexer em alguém ferido gravemente, mas supunha que isso já não tinha a menor importância agora.

Os lábios de Zoey se arregalaram e ela soltou uma gargalhada.

- Olha, olha só quantas estrelas – disse. – Cadê minhas revistinhas em quadrinhos?

Seus dedos abriam e fechavam. Seus pés tremiam e seus calcanhares batiam no chão. Scott pegou sua mão e beijou-a. Sentiu nos lábios o gosto do sangue de Zoey misturado às lágrimas que ele chorava.

- Ah, querida.

Ela não deu sinal de escutá-lo. O olho esquerdo estava fixo no teto, um pouco vesgo para a direita.

- From this valley they say you're leaving... – ela tinha começado a cantar. – I'll miss your bright eyes and sweet smile...

Scott levantou-se, arrumando Emily em seu colo. A garotinha apertava seu pescoço, sem deixá-lo respirar direito. Pela segunda vez em menos de cinco minutos, ele escutou o som de um tiro e sentiu o cheiro de pólvora. Virou-se e viu Donna de pé ao lado do corpo da garotinha que atirara em Skies e Zoey. Ela apontava a pistola para a cabeça da menina. Do cano da arma, um fiapo de fumaça subia.

- Donna – Scott chamou.

Donna olhou para ele, depois para Skies na poltrona. Seu rosto se contorceu quando ela entendeu que Skies jamais se levantaria dali. Lágrimas escorreram por suas bochechas cheias de rugas.

- Donna! – Scott gritou e a velha finalmente prestou atenção nele. – Por favor, ajuda ela. Eu... não sei o que fazer.

Só então Donna viu Zoey no chão. Ela empurrou Scott do caminho e ajoelhou-se perto da jovem. Ficou quase um minuto debruçado sobre ela, até virar-se de volta para Scott. Balançou a cabeça para ele uma vez.

- Tire-a daqui – ela apontou para Emily. – Ela não precisa ver isso.

Desnorteado, ele virou-se para a porta aberta. Aí pensou melhor e saiu pelos fundos, para o lago. Sentou com Emily às margens da água, olhando para todas aquelas estrelas refletidas e cintilando. Borboletas voavam à sua volta. Ele sentia as lágrimas quentes de Emily formando uma poça em sua camisa. Escutava a voz de Zoey vinda da casa, cantando uma música que ele não reconhecia e rindo de vez em quando.

Scott fechou os olhos e balançou Emily para frente e para trás em seu colo.

Então é isso, pensou. Isso é o fim do mundo.

Acima de sua cabeça, as estrelas brilhavam, indiferentes à dor do mundo.

***

Margot não conseguia andar, por isso precisou se apoiar em Henry quando voltaram à praia. Os monstros tinham ido embora poucos minutos atrás. Entraram no mar e desapareceram na escuridão das águas. Tudo o que restava deles eram as pegadas na areia e os corpos daqueles que Margot e Henry haviam derrubado aos tiros.

Estava silencioso. Como se o próprio universo prendesse a respiração, à espera do que aconteceria a seguir.

- Como você está? – perguntou Henry.

- Vou sobreviver – Margot respondeu. – Podemos ir logo? Estou preocupada com eles.

Com o braço esquerdo em torno dos ombros de Henry e com o garoto a sustentando pela cintura, eles atravessaram a praia rumo à floresta. Margot tinha o pé direito erguido. Já quase não o sentia mais: o membro estava dormente e frio, latejando em ondas, e isso a preocupou. Precisaria cuidar logo do ferimento se quisesse evitar uma amputação. Ela afastou o pensamento e mancou com Henry por entre as árvores. A todo o momento, esperava que um daqueles monstros pulasse sobre eles das sombras.

Como se lesse a mente dela, Henry perguntou:

- Será que eles foram mesmo embora?

- Foram – Margot respondeu sem pensar. – Tenho certeza.

Mas ela não tinha certeza de coisa alguma, e ambos sabiam disso.

Assim que a casa do lago surgiu diante deles, Margot entendeu que algo ruim acontecera. A porta da frente estava aberta, vomitando para a noite a pálida luz das chamas da vela. Ela e Henry trocaram um olhar e apertaram o passo, Margot ignorando as pontadas no pé ferido. Quase caíram ao subir os degraus da varanda e entraram na casa. Margot gritou por Scott e Henry pela mãe.

A cena diante deles teve o mesmo efeito de um soco no estômago.

Margot notou três coisas em sequência, e não soube qual delas a assustou mais. Primeiro, Skies na poltrona, com um buraco aberto na testa e a cabeça pendendo contra o peito; depois, a garotinha morta no velho tapete de boas-vindas, também com um rombo na cabeça. E, por último, Donna ajoelhada ao lado de Zoey perto do sofá.

O mundo de Margot rodou, e ela teria caído não fosse Henry segurá-la. Ele a arrastou pela sala, passando por Skies e a garotinha, parando próximo de Donna. Margot lançou um rápido olhar para Zoey e desviou o rosto. Não conseguia ver aquilo.

- Mãe? – Henry chamou num fio de voz. Donna não o escutou. Ele limpou a garganta e tentou de novo: - Mãe?

Donna ergueu o rosto para o filho. Lágrimas manchavam com sal suas bochechas. Ela segurava uma das mãos de Zoey. A jovem murmurava um monte de palavras desconexas, enviadas por seu cérebro despedaçado.

- Mãe... O que aconteceu?

Donna balançou a cabeça. Margot olhou em volta e perguntou:

- Scott?

- Lá atrás, no lago – disse Donna.

Margot deixou Henry com a mãe e mancou até os fundos da casa. Encontrou Scott sentado à beira do lago com Emily no colo. Aproximou-se e sentou-se ao lado dele. Scott a olhou com uma expressão vazia e Margot segurou sua mão.

- Sinto muito – ela disse.

- Você pode fazer algo por ela? – Scott perguntou. – Você é enfermeira.

- Acho que ninguém pode fazer algo por ela, Scott – Margot respondeu. – Ela... Ela não vai sobreviver.

- Mas ela está consciente. Está falando. Isso não é um bom sinal?

- Scott, sinto muito – Margot repetiu. – Sinto tanto.

No colo de Scott, Emily dormia. Margot acariciou os cabelos da menina, limpou o sangue de Zoey que secava no rosto dela.

- Seu pé – disse Scott, notando o caco de vidro que se projetava do calcanhar dela.

- Esqueça, não tem importância – Margot disse. – Conte-me o que aconteceu.

Com uma voz distante, como alguém que narra uma história que escutou e não que presenciou, Scott contou. Quando terminou, Margot ficou em silêncio, olhando as estrelas que se refletiam na água do lago.

- O que acontece agora? – ela perguntou.

- Agora? O mesmo que aconteceria antes – Scott respondeu. – Nada mudou. Ainda vamos para Nova York.

- Mesmo depois do que aconteceu com Zoey e Skies?

- Principalmente depois do que aconteceu com Zoey e Skies. Eles não vão morrer por nada. Não vou deixar.

- Acredito que a decisão não seja só sua – Margot olhou para Emily.

- Ah, ela concorda comigo.

Scott apontou para um ponto na beira do lago. Na terra molhada ali, alguém escrevera: Quero matar ela.

- Quem...

Margot tornou a olhar para Emily. A ponta do indicador direito da garotinha estava sujo de terra.

***

Deus. Ah, meu Deus.

Frank olhava para o corpo de Alicia estirado na praia. A tampa da cabeça dela sumira e pedaços de seu crânio se misturavam ao seu cabelo loiro. O sangue formava uma poça abaixo dela. Lembrava duas asas vermelhas se abrindo na areia.

O que eu fiz? O que foi que eu fiz?

Ele jogou a arma na areia e desabou ao lado de Alicia. Os olhos dela estavam abertos sem nada ver; o verde neles havia se apagado. Frank acariciou a bochecha dela, sujando os dedos com sangue. A pele era fria. Ficava azul, assim como seus lábios.

- Alicia – ele disse. – Minha doce Alicia.

Nada. A vida a abandonara. Em meio à tristeza que o devorava, Frank sentiu um estranho jorro de júbilo. No final, fora capaz de libertar Alicia da coisa que a possuíra. O seu único arrependimento era ter demorado tanto. Se ele houvesse tido coragem antes, se houvesse lutado por ela em vez de deixá-la prisioneira dentro de si própria, quanto mal não teria sido evitado?

Um oceano, era a resposta. Um oceano inteiro de mal.

- Espero que você me perdoe – ele disse. – Vou me encontrar com você logo. Prometo.

Cego não pela escuridão da noite, mas pelas lágrimas, ele tropeçou na areia até a Taurus. Pegou a arma e voltou para perto de Alicia. Pensou em fechar as pálpebras dela, como faziam nos filmes, mas mudou de ideia. Que ela olhasse. Que ela olhasse as estrelas e a lua e a beleza do céu.

- Alicia, Alicia – ele repetia sem parar. – Querida Alicia.

As mãos de Alicia estavam esparramadas ao longo de seu corpo. Frank as pegou e as cruzou entre os seios dela. Encostou o cano da Taurus contra a têmpora direita. A mordida do cano da arma em sua pele era fria. Ele olhou para Alicia uma última vez, desejando levar consigo para o outro lado a imagem do rosto dela, e cerrou as pálpebras. Pôs o indicador no gatilho e prendeu a respiração.

Estou indo, queri...

- Frank?

Ele abriu os olhos.

- Frank? É você?

A boca de Alicia mal se mexia enquanto ela falava. Seus olhos permaneciam apagados e fixos no céu. As únicas coisas que se moviam em seu corpo eram seus dedos: ela os corria pela mão de Frank, chamando o nome dele. Frank abaixou a Taurus. Alicia estava mesmo ali? Ou aquilo era só a mente dele lhe pregando um truque, como já acontecera antes?

Mas o toque dela em sua mão. O toque dela era tão real.

- Alicia? – ele sussurrou. – É você mesmo?

- Frank... – ela segurou a mão dele. – O que tá acontecendo? Eu não consigo enxergar nada – o rosto dela se encolheu numa careta. – Ah, Frank, estou com medo.

Os dentes dela começaram a bater. Era o frio, claro: ela era um bloco de gelo, tão gelada estava sua pele. Frank tirou o casaco e jogou-o sobre ela, cobrindo-a. Ela segurou os dedos dele com mais força.

- Estou aqui, Alicia – ele disse. – Não precisa ter medo. Estou bem com você.

Ela ergueu a outra mão e, às cegas, tateou atrás dele. Frank aproximou o rosto e Alicia pousou a palma em sua bochecha. Correu os dedos por seu cabelo.

- Eu sinto muito por ter machucado você – disse Frank. – Era o único jeito.

Os dedos de Alicia pararam em sua nuca.

- Frank?

- Estou aqui, querida.

O verde acendeu-se nos olhos dela:

- Você não deveria ter feito isso.

Antes que Frank pudesse entender o que acontecia, os dedos cravaram-se em sua nuca e puxaram seus cabelos. Ele escutou o barulho do couro cabeludo rasgando, sentiu o sangue escorrer quente por suas costas e, quando deu por si, estava sendo jogado longe, rolando pela praia enquanto engolia areia. A Taurus escapara de sua mão. Cuspe voou dos seus lábios. Ele parou de rolar e ficou de quatro, tossindo, tentando colocar-se de pé. Aí a dor explodiu em seu rosto quando o pé descalço de Alicia atingiu seu maxilar. Frank cuspiu uma mistura de dentes, saliva e sangue e caiu de costas na areia.

Acima dele, Alicia se erguia. Só que não era Alicia. Como ele podia ter sido tão idiota a ponto de não ter visto isso? Mas é como dizem: o amor é cego.

E, às vezes, o amor mata.

- Eu dei tudo a você! – a coisa vestida de Alicia baixou o pé na garganta de Frank. O estalar de sua traqueia se rompendo ecoou em seus ouvidos. – E é isso o que você faz comigo? – E pisou de novo. Frank engasgou com um jorro quente de sangue. – Você não tem esse direito!

Ela baixou o pé pela terceira vez. A essa altura, Frank não sentia mais nada. Nem dor, nem frio, nem medo. Sangue escorria de seu nariz, dos cantos de sua boca e de seus olhos, mas ele também não sentia isso. Olhava para as estrelas no céu. Elas giravam e giravam, um celestial carrossel de luzes. Pensou naquela noite, há tantos e tantos anos, quando levara Alicia para o piquenique na floresta de Pillowwood, em Judie's Hallow. Ela estava tão linda. E o modo como ela sorria: uma garota poderia colocar reinos inteiros de joelhos com um sorriso daqueles. Ele alguma vez dissera que a amava? Não conseguia se lembrar, mas esperava que sim. De qualquer forma, Alicia sabia.

Uma sombra escureceu as estrelas. Uma silhueta escura de olhos verdes. Ela ergueu o pé uma última vez, agora sobre a cabeça de Frank. Ele fechou os olhos. Lera em algum lugar que o amor sobrevive até mesmo à morte, e torceu para que isso fosse verdade. Que o amor sobreviva à morte, e que o amor seja o suficiente para guiá-lo até Alicia quando ambos estiverem do outro lado.

Quando nos encontrarmos de novo, vou levar você para ver um cometa.

O pé dela em sua cabeça. Uma rápida pressão. E, sem alarde, tudo acabou.

***

O Eu Sou, que era Alicia mas também era Outra Coisa, jogou a cabeça para trás e uivou para o céu. Amaldiçoou Deus e as estrelas e a lua e o universo e quem quer que a tivesse feito cair aqui, nesse mundo maldito e esquecido e abandonada pelo cosmos. Sentia algo dentro de si, algo no fundo do peito: uma erupção primitiva, forte o bastante para explodi-la em mil pedaços de vidro. Era isso o que os seres humanos chamavam de raiva? De frustração? Uma névoa vermelha se espalhava por seus pensamentos. Ela berrou até suas cordas vocais queimarem: se não gritasse, iria enlouquecer. Por isso gritou e esmurrou as coxas; arranhou os braços, as faces, puxou os cabelos sujos com pedaços do seu próprio cérebro. Ela os odiava: odiava a raça humana e esse planeta no qual ficara presa.

Aos poucos, o ataque de histeria passou. Ela ficou de joelhos ao lado do corpo de Frank, com lágrimas quentes escorrendo pelo rosto. Suas unhas tinham aberto profundos sulcos em suas bochechas e braços, e o sangue escorria ardido. Olhou para o pedaço escuro de terra que era Oak Island, tentando se lembrar do que fizera antes de Frank atirar nela e arrancá-la da garotinha. Ela disparara contra Emily? Matara Emily?

Sim. Recordava-se do dedo apertando o gatilho: do sangue que vira jorrar. Ela tinha conseguido, apesar de tudo. Emily estava morta. A única pessoa capaz de impedir o dilúvio não existia mais.

Isso a tranquilizou um pouco. Agora que a adrenalina baixava, ela sentia com mais intensidade os ferimentos em seu corpo. Tocou o alto da cabeça, no ponto em que o tiro da Taurus a acertara, e seus dedos encontraram algo quente e esponjoso. O cérebro de Alicia. Ela correu a mão por aquela massa cheia de protuberâncias, tentando pensar.

Topo do Mundo, Nova York.

Fora o que ela lera ao entrar na mente de Skies, antes de Emily expulsá-la. Topo do Mundo, Nova York. Sabia que Nova York fora uma grande cidade do tempo de antes, aquela com a estátua da mulher segurando a tocha. E o que era o Topo do Mundo? Ela não fazia ideia, mas era para lá que Skies planejava levar a criança. Devia ser algo importante. Só podia ser. Quem sabe, um lugar onde dar início ao dilúvio que lavaria esse mundo para sempre. Afinal, o topo do mundo com certeza ficava perto das estrelas, certo?

Ela se levantou. Era difícil enxergar do olho direito – uma película vermelha cobria tudo daquele lado – mas o esquerdo funcionava bem. Chamou de volta o seu Povo, dizendo a eles que o trabalho estava feito. Depois, revistou os bolsos de Frank até encontrar as chaves do Honda. Jamais dirigira um carro antes, mas Alicia já. Bastava acessar as memórias dela para aprender.

Foi até o carro, entrou e bateu a porta. Enfiou a chave na ignição, como vira Frank fazer tantas vezes, e deu partida. O motor pegou de primeira. Recorrendo novamente aos conhecimentos de Alicia, ela olhou para o indicador de gasolina e entendeu que o tanque estava cheio. Então abriu o porta-luvas e pegou o mapa, abrindo-o sobre o painel, esfregando o olho direito que ficava mais embaçado a cada segundo. Achou a cidade de Nova York, porém não fazia ideia de quanto tempo demoraria para chegar lá. Ela não tinha a mínima noção de distância e, ao vasculhar a mente de Alicia, descobriu que a garota também não.

Mas tudo bem. Sem pressa. Não havia motivo para se desesperar. Agora que Emily estava morta, ela tinha para si todo o tempo do mundo.

Não, mais do que isso: ela tinha para si o mundo todo. 

Continue Reading

You'll Also Like

2.9K 1K 14
Quando amamos alguém ou algo que valha mais do que a nós mesmos nós lutamos por aquilo, mesmo que isso custe nossas vidas ou mesmo que isso nos cause...
3.8K 270 12
"Duas pessoas, uma escolha" Somos almas condenadas.
3.2K 328 15
[Toda sexta-feira Um Novo Capítulo] Os seres humanos são amplamente reconhecidos por sua inteligência e habilidades versáteis. Contudo, infelizmente...
2.8K 226 1
Dança. A vida do jovem Peter se baseava em danças sensuais. Porém Stark, é contra tais atos. Por isso Parker sempre agia pelas costas de Anthony. Que...