A Viajante.

By guiguiroseira

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[Obra registrada na Biblioteca Nacional. Plágio é crime.] Março de 2016: Após o aparecimento de estranhas luz... More

A VIAJANTE
ZERO
Parte I
UM (i)
UM (ii)
UM (iii)
DOIS (i)
DOIS (ii)
DOIS (iii)
TRÊS (i)
TRÊS (ii)
TRÊS (iii)
Parte II
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ (i)
DEZ (ii)
Parte III
ONZE
DOZE
Parte IV
TREZE
Parte V
CATORZE
QUINZE (i)
QUINZE (ii)
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE (i)
DEZENOVE (ii)
Parte VI
VINTE (i)
VINTE E UM (i)
VINTE E UM (ii)
VINTE E DOIS
Parte VII
VINTE E TRÊS
Parte VIII
VINTE E QUATRO (i)
VINTE E QUATRO (ii)
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
Parte IX
VINTE E NOVE (i)
VINTE E NOVE (ii)
Parte X
TRINTA
TRINTA E UM
Parte XI
TRINTA E DOIS
TRINTA E TRÊS
Parte XII
TRINTA E QUATRO
AVISO: Comemoração
TRINTA E CINCO
Epílogo
FINAL
Nota do Autor

VINTE (ii)

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By guiguiroseira


Como Scott desconfiava, os carros abandonados na estrada eram tão úteis para ele quanto óculos de grau para um cego. Nenhum funcionava. Ele tentou dar partida em um Audi que estava com a chave na ignição – precisou tirar do banco do motorista um cadáver ressecado cuja pele podre grudou-se em seus dedos feito goma de mascar – e não conseguiu. Arriscou também fazer ligação-direta em pelo menos outros três veículos, e nada. Desistiu e seguiu seu caminho a pé.

No momento em que a noite caía, Scott estava com os pés doendo e inchados dentro dos sapatos. O que não era nenhuma surpresa, já que ele andara sem parar desde que deixara Crane e as garotas. Olhou para os dois lados da estrada, procurando uma placa com o nome de uma cidade ou qualquer coisa que pudesse indicar onde diabos ele estava, e não encontrou nada do tipo. A única coisa à vista era um outdoor comido pelo tempo e meio escondido pelas árvores que cresciam sem controle. Mostrava o rosto de uma lutadora de boxe com o nariz sangrando e um sorriso determinado, anunciando: LUTE COMO UMA GAROTA. A assinatura era o logo da Nike.

Andou mais um pouco. O dia findou: o céu, que se abrira após a passagem do tornado, adquiriu um tom roxo de hematoma e então foi engolido pelo negrume da noite. Não havia estrelas nem lua. Scott decidiu que era uma boa hora para parar – seus pés estavam em chamas – e aproximou-se de um Hyundai enferrujado largado no acostamento. Poderia dormir nele e continuar sua caminhada de volta para Corinna assim que a manhã raiasse.

Ele arrancou as trepadeiras que cobriam o carro e tentou abrir a porta do motorista. Estava emperrada, porém cedeu quando Scott deu-lhe um tranco, escancarando-se tão de súbito que ele quase caiu sentado no chão. Um fedor pulsante e adocicado o atingiu como um soco. Scott tampou o nariz e espiou o interior do Hyundai. Os bancos da frente estavam vazios, mas havia algo no banco traseiro. Um carrinho verde de bebê, coberto por um lençol branco, ao lado de uma mamadeira cheia pela metade de um leite amarelo e estragado. Era dali que vinha o cheiro.

Scott bateu a porta e se afastou. Havia outros carros na estrada, só que eles não pareciam mais abrigos para passar a noite. Pareciam túmulos. Dormir neles não seria diferente de deitar-se em um caixão. Scott teve uma visão de si mesmo dividindo a cama com um cadáver, e achou melhor deixar a ideia pra lá. Arrumou a mochila nas costas e seguiu para a floresta que margeava a Interestadual.

Adentrou as árvores. O negrume era total. Scott abriu a mochila e revirou-a até encontrar uma pequena lanterna. Ligou-a, e o feixe de luz brilhou com a intensidade de um holofote naquela floresta escura. Esperou para ver se as pilhas não iriam falhar – elas davam para fazer isso com uma frequência irritante – e voltou a caminhar, enroscando os pés doloridos nas raízes e tentando não imaginar o tipo de animal selvagem que vivia por ali.

Depois de uns dez minutos, encontrou uma clareira. As árvores tinham rareado, formando um círculo em torno de um espaço coberto de grama. Havia uma pequena barraca ali, que dava a impressão de ter sido abandonada há muito tempo. Ela sacolejava ao vento e os rasgos em sua lona abriam e fechavam como bocas falando.

Scott mirou na barraca a luz da lanterna.

- Ei! – disse. A mão direita segurava a .40 S&W. – Oi, tem alguém aí?

Nada. Com cautela, Scott foi à barraca, esperando que a qualquer momento que algo – ele não sabia exatamente o quê – saísse dela e pulasse sobre ele. Isso não aconteceu. O zíper da barraca estava aberto, e Scott lançou o feixe de luz da lanterna dentro dela. Viu um lampião coberto de poeira sobre um caixote de madeira, um saco de dormir embolorado e uma mochila. Pegou-a e abriu-a: em seu interior havia somente uma faca de caça em uma bainha de couro gasto, duas camisas masculinas de flanela com manchas de suor e uma calça-jeans rasgada, além de um caderno grosso de folhas amareladas.

Do dono da barraca nem sinal.

Scott abriu o caderno para ler o que estava escrito nele, o que se mostrou uma tarefa impossível. Não pelas letrinhas apertadas e garranchadas, mas sim porque as páginas tinham se deteriorado tanto com o tempo que haviam escurecido, impedindo a leitura. Uma foto, no entanto, deslizou do meio do caderno e caiu aos pés de Scott. Ele agachou-se e pegou-a. Mostrava um homem pescando em um barco com uma garotinha loira de rabo-de-cavalo, que dava para a câmera um imenso sorriso de dentes de leite faltando. Ele segurava uma vara de pescar e ela, um enorme peixe de escamas prateadas. Scott virou a fotografia e, no espaço branco atrás dela, leu: Hannah & Papai. Lago Lurleen, 07/07/2015.

Procurou por sinais da garotinha na barraca, um vestidinho ou um ursinho de pelúcia que fosse, e não encontrou nada. Guardou a foto de volta no caderno e deixou-o sobre o saco de dormir, com a mochila e as roupas. A faca de caça ele pegou para si.

Olhou em volta pela clareira. Duvidava que fosse encontrar um lugar melhor para passar a noite, por isso deixou sua mochila nas raízes de uma árvore e, com a lanterna ainda na mão, saiu para procurar um pouco de lenha. Não possuía muita experiência em acampamentos, porém sabia que o fogo ajudava a manter longe os predadores. Após recolher uma boa quantidade de gravetos e galhos secos, ele voltou para perto da barraca e usou os fósforos para acender o fogo.

- E ele disse: "faça-se a luz" – falou Scott.

Sentou-se ao lado da fogueira que estalava, desligou a lanterna e tirou os sapatos. Em seguida, arrancos as meias. Trincou os dentes ao ver as bolhas transparentes e cheias de pus em seus pés. Caramba, não era à toa que andar doía tanto. Ocorreu-lhe que Margot, com toda certeza, teria um truque para resolver aquele problema. Um remédio, um analgésico, uma pomada feita de ervas medicinais que fariam os machucados nos pés dele desaparecerem num passe de mágica.

- Não é mágica, Scott. É medicina – ele podia ouvi-la dizer. – Bem feito, é isso o que você ganha por abandonar aquela garotinha.

- Por que todo mundo fica dizendo que eu a abandonei? – ele perguntou para a clareira vazia. – Eu nem a conheço, porra.

- Ainda assim – Margot respondeu. – Bem feito.

Ele descartou a voz da irmã com um balançar de mão. Não sentia a menor fome, e só comeu o conteúdo de um enlatado porque sabia que precisaria de forças para encarar a caminhada do dia seguinte. Bebeu um pouco de água de uma das garrafas, ajeitou a mochila nas raízes e deitou sobre ela a cabeça. Acima dele, havia um teto escuro formado pelas copas das árvores. Elas se agitavam de leve. A lona da barraca também batia ao vento, produzindo um barulho meio assustador que lembrava passos.

Scott estava quase pegando no sono quando Margot falou outra vez:

- Scott?

Ele resmungou.

- Hum?

- Olha. São camélias.

Scott abriu os olhos e foi então que notou: havia camélias brotando nas bordas da clareira. Pés cheios delas: redondas, de um vermelho vivo, como rubis na noite. Será que elas só nasciam naquela cor ou variavam a sua palheta? Scott não sabia dizer. Achava que existiam camélias brancas, só que não tinha certeza. Observou-as balançar, algumas das pétalas soltando das coroas e pairando com delicadeza até o chão. Por fim, virou de lado e dormiu.

***

Devia estar dormindo há umas duas horas quando um barulho o acordou. Scott abriu os olhos e continuou deitado, imóvel. Aguçou os ouvidos. Galhos estalavam perto dele. Cráááck. Pausa. Cráááck. Pausa. Cráááck, assim, em intervalos de segundos. Eram passos.

Ele não estava sozinho no escuro.

Deixara a .40 S&W ao seu lado antes de dormir, e agarrou a arma. Crááááááck. E silêncio. A pessoa – isto é, se fosse uma pessoa e não um animal selvagem que decidira fazer de Scott o seu lanchinho da madrugada – parara de andar. Scott esperou o som de galhos quebrando se repetir, e tudo o que ouviu foi o crepitar da madeira na fogueira. Então:

Crááááck.

Ele sentou-se num pulo e apontou a luz da lanterna e a .40 na direção do som. O feixe branco projetado pela lanterna caiu em uma parede de árvores, e Scott vislumbrou um rápido movimento entre os troncos: um par de olhos brilhando, um bocado de cabelo se agitando e o vulto desapareceu, correndo para o interior da floresta.

- Ei! – Scott gritou. – Merda.

Levantou-se e correu atrás do vulto. A floresta era tão fechada que os galhos ficavam batendo em suas faces feito pequenas mãos de madeira. Ele ergueu os braços diante do rosto para se proteger e não diminuiu a velocidade. Os passos da pessoa se distanciavam mais e mais, ecoando pelas árvores. Cráck-cráck-cráck-cráck. Em algum lugar, uma ave, provavelmente uma coruja, soltou um grasnar que na escuridão soou como um grito saído de um pesadelo infantil.

Scott estava pensando que nunca conseguiria alcançar o vulto, o que quer que ele fosse, quando seu pé direito ficou preso em um amontoado de raízes. Por muito pouco não quebrou a perna: conseguiu jogar o corpo de lado no momento da queda, evitando que o osso fraturasse, mas não impediu a gravidade de agir sobre ele. Caiu de rosto no chão, bateu o queixo em uma pedra e escutou seu tornozelo estalar.

Não um osso quebrado. Mas uma torção? Com certeza.

Xingando, ele ficou de joelhos e limpou o sangue que escorria do corte aberto no queixo. Caramba, que ideia mais idiota. Por que ele saíra correndo daquele jeito? A pessoa que ele vira na clareira – sempre presumindo que ele não a imaginara – fugira dele, e Scott achara que seria uma boa decisão persegui-la por uma floresta escura.

- Você tem razão, Margot – ele disse, sentando-se com as costas apoiadas em uma árvore. – Bem feito pra mim.

Seu tornozelo direito era um pedaço de ferro quente na extremidade de sua perna. Doía feito o diabo. Ele o esfregou com uma careta. Na pressa, esquecera-se de colocar os sapatos, e seus pés agora sangravam. Sentindo-se a pessoa mais idiota do mundo, Scott levantou-se, decidido a voltar para a clareira e dormir antes que a noite piorasse. Como sua mãe dizia: Quando uma coisa começa a feder, é melhor deixá-la quieta, porque a merda só tende a aumentar.

No momento em que ficou de pé, sua cabeça bateu em algo. Achou que fosse um galho e tentou afastá-lo com a mão. Seus dedos tocaram couro. Scott ergueu o rosto e um par de pés calçados por botas flutuava a centímetros do seu nariz. Recuou um passo, mais surpreso do que assustado.

Era um homem enforcado. Ele pendia de um galho com uma corda em torno do pescoço quebrado. Balançava devagar, quase numa dança, e o rosto era uma mortalha amarela esticada sobre o crânio. A pele em torno da boca recuara e os lábios tinham desaparecido, expondo um enorme sorriso de caveira.

Havia algo escrito no tronco da árvore onde o homem se enforcara, as letras entalhadas na madeira com a ajuda de uma faca. Scott jogou a luz da lanterna sobre as palavras. Eram só duas. Desculpe, Hannah.

Ele encontrara o dono da barraca.

***

Voltava para a clareira, mancando e com uma crosta de sangue se formando em seu queixo machucado, com o orgulho mais ferido do que o tornozelo torcido, quando a lanterna falhou. Scott bateu com ela na palma: a luz acendeu-se, piscou, e se apagou outra vez.

- Você só pode estar brincando – disse Scott.

Enfiou a lanterna no bolso. Nem tentou ligá-la de novo. Com o azar que estava, as pilhas daquela coisa provavelmente explodiriam em sua mão e amputariam seus dedos. Tornou a mancar, encolhendo-se de dor toda vez que seu pé direito tocava o chão, e começando a achar que se perdera. A clareira ficava mesmo longe daquele jeito? Sem resultado, ele procurou pela chama da fogueira em algum lugar na escuridão da floresta. Devia ter feito uma trilha de migalhas para não se perder, como naquela história com os irmãos e a bruxa com a casa de doces. Margot a lera uma vez para ele quando eram crianças. João e Maria? Algo assim. Ele...

Cráck.

Veio da direita. Scott girou ao mesmo tempo em que levantou a .40.

- Zoey?

Num primeiro momento, sim. Era Zoey parada ali entre as árvores, usando a camiseta dos Rolling Stones e com um livro nas mãos. Aí a impressão desapareceu, e Scott entendeu porque confundira a pessoa à sua frente com Zoey. Elas eram um pouco parecidas, pelo menos no escuro. A mesma altura, o mesmo corpo magro e o rosto meio afunilado e pontudo. As semelhanças, no entanto, acabavam aí. A garota diante de Scott, coberta por algo que não era bem um vestido e sim um pedaço de pano velho e rasgado, era mais nova do que Zoey. Devia estar nos primeiros estágios da adolescência. E era mais desnutrida, também, seus braços tão finos que lembravam gravetos revestidos de pele. Ela olhava para Scott sem piscar, a boca entreaberta murmurando algo que ele não ouvia.

- Caramba, eu quase atirei em você – Scott abaixou a arma.

A garota não deu sinal de tê-lo escutado. Os dedos dela abriam e fechavam em espasmos, e ela tremia, o que não era nada espantoso. A noite estava gelada, e aquele pedaço de trapo que ela vestia não devia protegê-la do frio.

- O que você está fazendo aqui? – Scott perguntou. – Está sozinha?

Novamente, ela não respondeu. Scott mancou dois passos na direção da garota e parou. Notou algo: ela estava menstruada. Um filete de sangue escorria pela parte interna de sua perna direita em um riozinho escuro. Naquele momento, uma vaga sensação de apreensão tomou conta dele. Não era exatamente medo, porém alguma coisa não estava certa. Nem um pouco certa.

- Como você se chama? – perguntou Scott.

A garota escancarou a boca, que se abriu como um pequeno buraco negro abaixo de seu nariz. Ela começou a emitir um barulho do fundo do peito, um som que ficava em algum ponto entre um urro e um grito. Seus olhos rolaram nas órbitas como bolinhas em uma máquina de pinball e fixaram-se de novo em Scott. A mão direita dela voou para entre suas pernas, pousou ali por um segundo e então ela ergueu os dedos sujos de sangue menstrual. Com o indicador, apontou para o céu. Disse uma única palavra:

- Anunnaki.

Como se essa fosse uma palavra mágica que fazia a terra se abrir, o chão sob os pés de Scott cedeu. Ele despencou. A queda não durou muito tempo: ele deve ter caído por uns quatro metros antes de bater em um chão duro. Pedrinhas e poeira o engolfaram em uma nuvem de detritos. Scott sentou-se e olhou para cima. Parada à borda do buraco, a jovem olhava para ele lá embaixo. Havia outras pessoas ao lado dela. Dois homens. Não passavam de sombras, as silhuetas escuras de seus corpos recortadas contra o céu da noite.

A cabeça de Scott girava. A coisa toda acontecera rápido demais. A .40 S&W escapara de seus dedos e ele tateou no fundo pelo chão de pedras, procurando pela arma, tossindo com a nuvem de poeira. Uma agitação lá em cima, e uma das sombras ao lado da jovem se agachou na boca do buraco. Falou algo em uma língua que Scott não compreendeu, e a garota respondeu usando o mesmo idioma estranho. Mais um amontoado de grunhidos do que palavras de fato.

Os dedos de Scott bateram no metal frio do cabo da arma. Ele a pegou e a apontou para cima. Não teve tempo de apertar o gatilho. Alguma coisa pinicou seu pescoço, feito uma ferroada de abelha. O mundo começou a rodopiar, as paredes do buraco girando em torno de Scott com a cadência de um carrossel. Suas pernas adormeceram, em seguida seu tronco e seus braços. Ele tentou se agarrar à consciência, mas era difícil, como tentar pegar uma moeda do chão sem usar as unhas. A .40 S&W caiu de sua mão outra vez. E aí então quem caiu foi o próprio Scott, despencando para frente enquanto sua vista primeiro piscava, depois se apagava.

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