O Dragão de Uruma

By Rod_Carvalho

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Uruma estava no extremo sul do continente. Um distrito célebre apenas por margear a implacável Floresta Sagra... More

Agradecimentos...
01. O Boi e o Rato [Isao]
02. Um Lobo Sem Presas [Ryota]
03. Mudanças Sem Afagos [Isao]
04. Um Discípulo Sem Mestre [Ryota]
05. A Última Folha a Cair [Isao]
06. O Porta-voz dos Humildes [Ryota]
07. O Primeiro Pecado [Isao]
08. Uma Floresta Sagrada? [Ryota]
09. Sakura! Sakura! [Isao]
10. No Colo Macio [Ryota]
11. O Fruto da Passagem [Isao]
12. Máscaras e Espelhos [Ryota]
13. Pó e Fuligem [Isao]
14. O Festival e a Carruagem [Ryota]
15. Antigas Armadilhas [Isao]
16. Difíceis Decisões [Ryota]
17. A Dor do Vazio [Isao]
18. Uma Última Gargalhada [Ryota]
20. Primeiros Passos [Ryota]
21. O Choro Surgido do Vazio [Isao]
22. A Misteriosa Visita [Ryota]
23. O Fantasma de Um Samurai [Isao]
24. O Homem de Preto [Ryota]
25. Lembranças Sombrias [Isao]
26. O Estranho Prisioneiro [Ryota]
27. O Lado Mordido da Maçã [Isao]
28. A Honra da Obediência [Ryota]
29. Os Senhores de Uruma [Isao]
30. O Destino Em Um Papel [Ryota]
31. Dívidas Antigas [Isao]
32. Moldado Como Argila [Ryota]
33. O Touro Orgulhoso [Isao]
34. Questão de Lealdade [Ryota]
35. Lições de Altruísmo [Isao]
36. A Natureza do Samurai [Ryota]
37. Yumi-Yumi [Isao]
38. Muitas Promessas [Ryota]
39. À Lucidez do Saquê [Isao]
40. Confissões de Um Samurai [Ryota]
41. Um Fim Inesperado [Isao]
42. À Espera da Guerra [Ryota]
43. O Espelho [Isao]
44. Na Toca da Serpente [Ryota]
45. Fogos de Artifício [Isao]
46. Máscaras Caídas [Ryota]
47. As Asas da Noite [Isao]
48. A Travessia [Ryota]
49. Hálito Azedo [Isao]
50. Cercado Por Todos os Lados [Ryota]
51. Todas as Culpas [Isao]
52. Grilhões Invisíveis [Ryota]
53. Um Abraço Apertado [Isao]
54. O Vaso Quebrado [Ryota]
55. Um Vaga-lume [Isao]
56. Guerras e Cachorros [Ryota]
57. A Revelação [Isao]
58. Novos e Antigos Duelos [Ryota]
59. Cavalos e Estandartes [Isao]
60. Últimos Passos [Ryota]
61. A Cegueira do Homem [Isao]
62. Enfim, Um Samurai [Ryota]
63. Sem Volta [Isao]
64. Coragem do Samurai [Ryota]
65. Uma Luz Vacilante [Isao]
66. Epílogo
67. O Nascido de Cabra [Isao]
68. A Jornada [Isao]
69. Cruzando a Ponte [Isao]
70. Uma Espada Sem Fio [Ryota]
71. Palavras de Cristal [Ryota]
72. O Estralar Dos Cristais [Ryota]
73. O Fim [Ryota]
74. A Despedida

19. A Velha Carroça [Isao]

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By Rod_Carvalho

Resmungando, Isao amarrou a faixa com um nó desajeitado e esperou, combalido, o quimono escorregar por seu ombro e se desarrumar pela milésima vez. Odiava-o, assim como não suportava todas as peças de seda. Eram extravagantes, lustrosas em demasia, e não se acertavam em seu corpo nem se grudadas com seiva de eucalipto. Só Hiromi para convencê-lo de vesti-lo. Insistiu que seria mais apropriado para ocasião, que ele deveria parar de usar roupas velhas e que era jovem demais para as manias dos nascidos de Boi, dados ao conforto e a avareza.

Aquela velha rabugenta era intragável quando queria.

Agachou-se para pegar as sandálias e se desequilibrou ao sentir fraqueza. Chamas relampejaram em seus olhos e gritos desesperados chegaram aos seus ouvidos. Sentou-se, fechando os olhos e procurando acalmar a própria respiração. Havia passado a noite acordado, atormentado pelas imagens do bandoleiro agonizando à sua frente e pelas lamúrias desesperadas da mãe ao morrer.

Alguém, velado pela escuridão de sua mente, divertia-se, sussurrando-lhe preces amaldiçoadas com um sorriso demoníaco.

Isao orou no pequeno altar até se recuperar por completo das tonturas. 'Talvez seja fome', iludiu-se. Não comia desde o dia anterior na casa de Akio e tinha passado a manhã toda trancado, recluso, sem nem mesmo ir à cozinha beliscar alguma coisa no almoço. Desanimado, terminou de se arrumar com má vontade e saiu da casa pelos fundos.

Do quintal, o tio já gritava seu nome.

Desceu da varanda e parou no último degrau procurando, com incomum preocupação, o caminho que deveria fazer para escapar das poças d'água até a carroça. A lembrança do dia anterior, do pé emergindo engolfado de lama, ainda lhe causava irritação.

– Pelo olho de Chigaro! Vamos, logo! Que lerdeza! – gritou Shimada, lutando, como sempre, para se acomodar na parte fronteiriça da carroça.

Quando ia ao centro, para cerimônias e festividades, Shimada preferia dispensar os serviçais e guiava ele mesmo a sua carroça de estimação. Evidenciava sua vicissitude, acreditava. O maior senhor de Uruma não precisava de nenhum amparo, nenhuma comodidade que lhe pusesse em dúvida sua virilidade, necessitava apenas de uma discreta ajudinha para que conseguisse encaixar as pernas, hoje, mais roliças que musculosas, e sua barriga, mais e mais protuberante, no espaço mínimo entre as barras que prendiam os cavalos e o encosto de madeira do condutor.

– Venha para frente! – ordenou o tio ao perceber que o sobrinho pretendia sentar na parte de trás do veículo, frustrando sua intenção de ter uma viagem sossegada e silenciosa. – Ajude-me aqui. Essa maldita carroça parece menor – resmungou, lutando para encontrar uma posição no acento, enquanto as escamas de sua armadura tintilavam de uma maneira irritante.

O velho tio também parecia achar importante, para reforçar sua hombridade, apresentar-se como um prestigiado veterano de guerra, pomposo por seus conflitos do passado, ainda que, em sua grande maioria, não tivessem sido mais que brigas de bar. Prendia os cabelos brancos em um rabo de cavalo alto com um laço de seda dourado como os Guardiões do Dragão, cobria-se com um peitoral quase grotesco, de entrelaçados de couro tingidos em tom terroso com presilhas em ônix negro, e ostentava em sua cintura a espada que dera o peculiar apelido de 'Rompedora do Céu', ainda que Isao pudesse apostar que se dependesse de seu uso, ela mal cortaria uma cenoura pela metade.

– Essa festa irá fracassar – falou Shimada, já mastigando um pedaço de fumo. – Estamos indo por respeito aos costumes, mas não vejo alternativa.

A colina, onde jaziam as ruínas do Templo, escondia-se na paisagem com suas cores esmaecidas pela grossa chuva que caía. Isao sentiu um calafrio percorrer sua espinha e suspirou, consciente do motivo.

Era culpado em negligenciar as obras para a reconstrução do antigo prédio. Não gozava de verba, nem de trabalhadores suficientes, mas não tinha certeza se havia se dedicado o bastante. Como idealizador do projeto, deveria empregar o máximo de esforço para que fosse concluído um templo digno do Deus Supremo. Um lugar que receberia todos aqueles que sofriam, que precisavam de amparo, que serviria como uma escola para aqueles que ignoravam a fé verdadeira.

Inseguro, pediu perdão em silêncio.

– Uma comemoração dessa magnitude sem segurança, não há como dar certo – continuou Shimada, mesmo tendo sido ignorado pelo sobrinho. – Como o Kerai espera que tudo corra bem, confiando a guarda a um garoto fraco que mal desmamou da teta da mãe? É uma afronta a quem se preocupa com a cidade! Esses desgraçados desses estrangeiros querem acabar com Uruma! – exaltou-se, concluindo o discurso com seu habitual escarro para fora da carroça.

Isao não suportava aquilo.

– Prefiro acreditar que tudo correrá bem. Aliás, gostaria de agradecê-lo, meu tio – tentou desviar do assunto.

– Me agradecer?

– Sim, por ter permitido a cerimônia para Tanaka – disse, procurando não encará-lo.

– Ah! Mais uma de suas loucuras que tive de engolir – urrou, voltando-se para fora da carroça para outra escarrada. – Por mais que não acredite, tenho respeito pelos mortos. Mesmo este sendo apenas um serviçal. O que não muda em nada o seu disparate. Quando você irá parar de ignorar minha posição em Uruma?

'Posição em Uruma?', gargalharia caso estivesse com alguma disposição para discutir. Bastava o enjoo e as dores de cabeça. Não precisava de seu tio berrando como um touro enlouquecido em seu ouvido todas as baboseiras sobre a importância de seu nome para a história de Uruma. Já tinha decorado suas palavras há algum tempo.

Preferiu ficar em silêncio, fingindo respeito, e guardando a gargalhada para um momento menos catastrófico.

– Você não deveria ter se envolvido – continuou Shimada. – Como achou por bem ir à Floresta? É um inconsequente! Poderia ter morrido só para ajudar um garoto incompetente que se acha líder da guarda.

A chuva havia aumentado e invadia a cobertura de couro da cabine improvisada. Vez ou outra, principalmente quando seu tio ignorava os buracos no caminho, o trepidar da carroça lançava sobre os dois a água acumulada na parte de cima do tecido. Tentou proteger suas roupas, já encharcadas em todo o seu lado direito, e amaldiçoou Hiromi por tê-lo convencido a vesti-las. Melhor seria se tivesse com seu surrado e confortável quimono de algodão.

– Ele é o líder da guarda, quer o senhor queira ou não. – Um dia ainda veria o tio enfiar sua arrogância entre as pernas e se submeter a Ryota como um bezerro obediente. – E esteja certo de que eu não negarei ajuda a ele, mesmo que tenha de arriscar minha vida uma outra vez – decretou, sentindo-se orgulho de suas próprias palavras.

Todos poderiam argumentar o que quisessem, mas o fato, irrevogável, era de que ele, o prematuro sacerdote da cidade, havia se embrenhado na temível Floresta Sagrada, abarrotada de bandoleiros e maldições, para socorrer o líder da guarda e seus soldados.

Fracassara com Tanaka, tinha de admitir, mas seu ato de bravura, ainda que oculto em sua parte mais heroica, seria o suficiente para estabelecer de uma vez por todas em Uruma sua imagem de destemido e benevolente. Perfeito seria se conseguisse, de forma discreta, espalhar que havia sido ele a salvar Ryota.

'Pare de pensar asneiras, Isao!', murmurou.

– Você gosta de defender aquele filho de forasteiro de bunda macia só para me afrontar! – Shimada voltou-se para ele, ignorando por completo a estrada à sua frente. – Aquele garoto vai pagar caro por ter invadido minhas terras!

Os buracos faziam sua cabeça doer. Agora, ainda mais tonto e nauseado, continuava a ser jogado de um lado ao outro junto ao balanço incessante da carroça.

– Aquele garoto cumpriu com uma obrigação que era sua. – Não evitou que as acusações escapassem. – O honorável senhor de Uruma deveria se envergonhar por ter fugido para taverna enquanto as próprias terras eram invadidas por bandoleiros!

'Pelo amor do Supremo, por que eu tenho uma boca tão grande?'

– Co-mo? – sobressaltou-se Shimada, puxando as rédeas com violência, sem impedir que o veículo desviasse para fora da estrada por alguns metros. – Seu... – bufou – Seu moleque! Você merece uma coça!

– Quer nos matar? – resmungou, agarrado ao banco, rezando para que o tio não perdesse o controle.

– Como você ousa me desrespeitar dessa maneira? Seu moleque mimado! – gritou, tomando o braço de Isao com força.

– Me solte! – O esforço extremo de Isao para se desvencilhar, apenas aumentou a pressão dos dedos de Shimada, enterrados em seu braço sem carne. – Olhe a maldita estrada, pelo amor do Supremo!

– Ouça uma coisa com atenção, seu moleque atrevido. – Shimada cuspia e jogava seu hálito de fumo no rosto de Isao. – Não se atreva a seguir os passos da vadia da sua mãe, porque se o fizer, eu lhe esfolo vivo!

A carroça sacodiu com uma pancada oca. Isao se segurou como pode e não evitou de engolir o vômito amargo que subira pela garganta. Por um instante, sua mente, embaralhada pelos solavancos, encontrou a mãe, suja pelas palavras de Shimada, encolhida em meio aos seus pensamentos raivosos.

– Então, me mate de uma vez, seu velho maldito! – Enfim, conseguiu se livrar das garras do tio. – faça como fez com ela!

– Quem você pensa que é para me acusar de ter matado minha própria irmã? Enlouqueceu, seu fedelho?

– Você a abandonou para morrer!

– Foi ela quem decidiu fugir com o primeiro cafajeste que passou na frente dela!

– Não ofenda a memória de minha mãe! – Isao se lançou sobre as rédeas dos cavalos e as puxou com violência, ensandecido para que a carroça interrompesse seu movimento.

– Você está com a Febre! Só pode! – bradou Shimada, tentando manter o veículo sob controle. – Cale a boca e fique quieto de uma vez! – empurrou-o de volta para o seu lugar.

Isao se recostou na porta da carroça e recebeu o jorro de água que escapava da fenda lateral do teto. Permitiu que a chuva acariciasse seu rosto, o envolvesse como uma máscara mortuária, roubando-lhe o ar aos poucos. Não tardou para que reconhecesse aflição tão familiar em seus sonhos. Para que ouvisse os gritos em eco de sua mente implorando-lhe pela vida, para que ele se erguesse soberano sobre sua própria e maldita consciência. Mestre de seu próprio destino. 'Eu poderia escolher a morte, agora...', murmurou, tomado por uma tranquilidade demoníaca, uma calmaria que surgia sempre no final, momentos antes de acordar e perceber, em um instante de frustração, que ainda estava vivo.

Satisfeito, afastou o rosto da coluna de água, respirou fundo e amaldiçoou o fato de não ser a eclísia a invadir seus pulmões.

'Por que o Supremo foi tão cruel em negar-me ao menos uma única lembrança de minha mãe?'

– Ainda que tenha sido fruto do pior dos erros, você é meu sobrinho. – Shimada o despertou. – É um nascido de Boi, como eu, sangue do meu sangue, e isso basta para mim.

Isao sorriu, exausto. Sentia seu corpo entorpecido.

– Basta para você? – gargalhou. – Aceitou-me porque precisava de um herdeiro. Um filho que não teve a competência de fazer.

Shimada o encarou. Em um primeiro instante, não viu fúria, apenas uma súplica calada, intensa, escapada de algum compartimento enterrado no peito do tio. Não teve pena. Iria até o fim. Daquela vez, ele venceria.

Estava pronto para dizer todas as palavras.

– Teve de me engolir e adotar-me por uma fatalidade. Nada mais que isso – disse, saboreando a expressão sofrida de Shimada chacoalhar junto a carroça. – Quis o destino que o maior de todos os touros do Sul não fosse reprodutor.

Um estampido.

Veio o ruído estridente do metal das rodas se arrebentando.

A carroça balançou com um estrondo assustador e se chocou com a parede de terra que margeava a estrada. Os cavalos, desesperados, ainda puxaram o veículo tombado por alguns metros, antes de se libertarem das traves de madeira. Ao seu lado, Shimada permaneceu atônito, agarrado a estrutura, procurando entender o que havia acontecido.

Isao pulou para fora do veículo e seguiu vacilante pela estrada.

– Pois fique com sua maldita carroça! 

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