A TV estava ligada no último volume quando acordei no sofá de James.
Parecia um daqueles reality shows de competição da MTV, "... e um grande prêmio de cem mil dólares! Com participação especial de...".
- Morgen!, dorminhoco - James disse. Ele pulou por cima do encosto do sofá e sentou em cima dos meus joelhos.
- Ai! - Sacudi meus pés para me livrar do peso dele. - Que horas são?
- Duas da tarde - uma voz com sotaque italiano respondeu.
- O que? Argh - gemi. Lentamente, esfreguei os olhos e olhei para a sala à minha volta.
Havia alguém sentado na poltrona. Uma garota. Colega de apartamento de James, talvez? Não me lembrava se James dividia a casa com mais alguém.
- Morgen! - eu disse a ela.
Ela e James continuavam com os olhos grudados na TV.
- O que é isso? - perguntei. Minha cabeça doía. Milagrosamente, havia um copo de água na mesa de centro, ao lado do meu celular.
- RuPaul's Drag Race - James disse. - É nosso culto de domingo.
Bebi um gole de água e foi como se os portões cintilantes do paraíso tivessem sido abertos dentro da minha boca.
Peguei meu celular e encontrei uma mensagem de Remus, e sua foto no WhatsApp - ele em alguma praia, inclinado para a frente e sorrindo - acordou outras partes de mim.
Que Sirius me perdoasse.
Se você ainda quiser aquelas aulas de alemão, meu turno na livraria acaba às 17h hoje. Me encontra lá?
Uau.
Também notei que não havia mais nenhuma ligação perdida ou mensagens dos meus pais. Quando cheguei em Vienna, eles me ligavam sem parar, agora eu já estava havia quase dois dias sem nenhum sinal deles.
Aquilo me preocupou. Será que Bella havia finalmente decidido puxar o gatilho e contar meu segredo? Será que minha mãe e meu pai já tinham me excluído de suas vidas?
Será que eles fariam comigo o mesmo que fizeram com Sirius?
Levantei do sofá e fui até o banheiro para me recompor. Meu cabelo estava uma bagunça. Quando voltei para a sala de estar, um monte de drag queens estavam enfileiradas na tela da TV.
James me lançou um olhar engraçado.
- Pela sua cara, parece que você está vendo uma invasão alienígena chegando à Terra pela primeira vez.
- Não, é só que...
- Você nunca viu uma drag queen antes, né?
Dei de ombros.
- Elas meio que me lembram palhaços.
James balançou a cabeça negativamente. Ele abriu espaço no sofá e me chamou para sentar ao seu lado.
- Está vendo aquilo ali? - James apontou para uma drag que tinha acabado de sair de uma limusine vestindo um macacão brilhante e uma peruca branca enorme. - Um palhaço jamais arrasaria assim.
Ele estava certo. Drag queens eram muito mais sofisticadas do que palhaços. Eu nunca tinha visto RuPaul's Drag Race antes, mas não levou muito tempo para que eu começasse a fazer perguntas sobre as regras e as competidoras. Era tipo America's Next Top Model, mas com homens de salto alto. E deboche. Todas aquelas pessoas eram incrivelmente debochadas.
+10: Gosta de RuPaul's Drag Race.
Durante a batalha de lip-sync, respondi à mensagem de Remus.
Morgen!
Remus respondeu de volta.
Uau, você já é fluente. Talvez não precise de mim no fim das contas...
Respondi imediatamente.
Sorte de principiante.
Ele mandou:
Então você está dizendo que ainda precisa de um professor?
Parei para pensar.
Como se diz sim em alemão?
Remus escreveu:
Ja. Me encontra na livraria, então?
Comecei a digitar "te vejo lá", mas em vez disso acabei enviando um emoji de positivo.
Depois que o episódio de Drag Race terminou - uma drag alta e branca com um nome muito apropriado (Milk) foi eliminada -, a amiga de James foi embora, e ele foi para a cozinha fazer macarrão. Eu fiquei conferindo meu celular toda hora para ver se meus pais haviam ligado ou mandado mensagem.
- Está tudo bem? - James perguntou enquanto a gente comia. Eu mal havia tocado meu prato. - Está bom, eu confesso. O molho bolonhesa é enlatado. Eu claramente arruinei a comida pra você. Pode ir pra casa agora.
Casa.
James estremeceu por causa da sua escolha de palavras.
- Desculpa - ele disse. - Eu sei que você não pode...
Sua voz se perdeu no meio da frase. Mas ele estava certo, afinal.
Porque se Bella realmente havia contado tudo para a minha família, eu não poderia voltar para casa.
Imaginei como seria aparecer na porta e encarar o olhar vazio dos meus pais. Eles não me reconheceriam. Só conseguiriam enxergar a pessoa naquela foto, beijando Marcus no carro.
- Relaxa - eu disse para James.
Ele assentiu.
- O que você achou de Drag Race? - James perguntou.
Me forcei a comer uma garfada de macarrão.
- É legal - eu disse, mastigando lentamente. - Você e sua amiga parecem gostar bastante.
Os olhos de James se iluminaram.
- Ah, nós somos obcecados. Sabe por quê? Porque drag queens estão cagando e andando. Não existe ninguém nesse planeta que se importa menos do que elas. As pessoas podem chamá-las de aberrações, dizer que estão confusas, são doentes ou qualquer coisa, e elas estão pouco se fodendo pra tudo isso.
Eu sorri.
- Até os palhaços ligam para o que as pessoas acham deles - eu disse.
- Ah, palhaços são as coisinhas mais frágeis do mundo. Eles não sabem ouvir críticas. Acredite em mim. Já saí com palhaços o bastante pra saber. Mas, em compensação, drag queens... - James leva os dedos até a boca e faz um beijo do chef. - Aff, eu simplesmente adoro elas.
- E, tecnicamente falando - eu disse, engolindo mais uma garfada de macarrão -, é incrível como elas conseguem se transformar daquele jeito.
- Exatamente! Elas se montam. Elas cantam. Elas têm perucas fabulosas. Elas são tipo... qual é o nome daquela estrela da Disney que é uma garota normal, mas, secretamente, vira uma popstar à noite?
- Hannah Montana.
- Isso. Eu sabia que era o nome de um estado do Centro-Oeste. Enfim, drag queens são tipo a Hannah Montana, só que menos cafonas.
- Em primeiro lugar, como você ousa desmerecer a Hannah Montana desse jeito? - eu disse, apontando o garfo para James. - E,em segundo, acho que Montana não fica no Centro-Oeste. Tecnicamente, fica no Noroeste.
- E como é que você sabe disso?
- Uma vez eu... passei um sábado inteiro editando todas as páginas da Wikipédia sobre as diferentes regiões dos Estados Unidos.
- Não vou nem perguntar - James bagunçou meu cabelo. - Esquisito.
- Disse o cara que vê drag queens na TV todo domingo.
- Bom, mas me parece que você acabou gostando das drags também - James disse com uma piscadinha. - Você achava que elas pareciam palhaços, mas viu que elas são muito mais do que isso. Viu só? Você só precisou dar uma chance a elas.
Contei para James que ia encontrar Remus mais tarde para a nossa primeira aula.
- O que você vai fazer hoje? - perguntei.
- Eu ia dar um pulo na casa da Lily mais tarde- James suspirou. - Mas ela decidiu ir viajar. Eu deveria mesmo era fazer minhas tarefas de álgebra. Estou atrasado com alguns exercícios.
- Então você vai estudar?
- Provavelmente não. O dia está bonito demais pra ser responsável. Pra ser sincero, acho que só vou descer até o café ali do outro lado da rua e sei lá. - Ele apontou para a janela. - Escrever, talvez.
- Um poema?
James deu de ombros.
- Talvez. Ou alguma outra coisa pode acabar prendendo minha atenção. Um amigo. Um aperitivo. Eu não consigo controlar essas coisas.
✰✰✰✰
A livraria ainda estava cheia quando cheguei. Remus me pediu para aguardar por um instante enquanto ele andava pela loja recomendando livros e tirando-os das prateleiras.
Ele era simpático com todo mundo, até mesmo enquanto enxugava rios de suor da testa. Sua energia de Grande Livreiro estava com tudo.
- Tudo pronto - Remus disse depois que o sino na porta indicou a saída do último cliente. Ele pegou sua bolsa atrás do balcão do caixa. - Vamos nessa.
Caminhamos até o Baumarkt, onde teríamos mais espaço para ficarmos à vontade durante a aula.
Mesmo andando ao seu lado, eu mal conseguia olhar para o Remus. Era como se Deus tivesse escondido um sósia do Ryan Reynolds na Áustria, longe de todos os tabloides, mas bem na frente dos meus olhos cheios de hormônios.
Sirius que me perdoasse.
- Está tudo bem? - ele perguntou. - Você está estranhamente quieto.
- Desculpa - eu disse. - Só estou cansado da noite de ontem.
- Eu que o diga. Consegui dormir por duas horas e olhe lá - Remus disse- Pads falou até que eu o mandasse calar a boca.
Tentei olhar para Remus, mas meus olhos desviaram dele e foram parar nas lojas. Estávamos atravessando a mesma rua da noite anterior.
- Obrigado por fazer isso por mim - eu disse.
- Ah! Eu não estava tentando fazer você se sentir culpado - ele comentou. - Acredite, eu estou feliz por ter dormido pouco. A gente não tinha uma noite como aquela fazia muito tempo.
- Sério? Achei que vocês fizessem isso o tempo todo. - Mantive meus olhos focados no movimento das pessoas. Várias barracas de comida e tendas brancas estavam armadas.
Remus riu.
- A gente fazia, mas aí todo mundo cresceu. Ficamos chatos. Arrumamos namorados. Sei que eu e Sirius parecemos ter vinte anos, mas, acredite, temos setenta por dentro. Nunca arrume um namorado,Regulus
Revirei os olhos.
- Que foi? Você é meu pai agora?
- Talvez seu daddy... Ai, meu Deus. Brincadeira - Remus disse. - Sirius me mataria se me ouvisse dizer isso pra você.
Eu paro.
- Estou feliz que ele tenha alguém como você - Digo honestamente.
- E eu estou feliz de ter alguém como Sirius.- Remus rebate, com um sorriso nos lábios.
Já que estávamos rindo juntos, consegui olhar para ele. Foi como aquela vez que roubei na competição de não se encarar com o Marcus, quando dei a primeira espiada.
— Enfim — Remus continuou. — Acho que esse verão vai ser diferente, na verdade. Você sabe que o James vai embora daqui a algumas semanas, aquele filho da mãe. Todo mundo está devastado. Dá pra perceber que nossos amigos estão mais dispostos a sair, se encontrar com ele, fazer coisas, já que é nosso último verão juntos. E agora temos o Baumarkt. Você chegou em boa hora.
Por um momento, fechei os olhos e me permiti imaginar um verão inteiro com todas aquelas pessoas. Pintei o cenário na minha cabeça e era uma obra-prima.
Chegamos ao Baumarkt. Sirius não estava. Remus me entregou um caderno novo, e me senti estúpido por não ter levado um. Dissemos “Hey ” para a moça que estava limpando o terraço, e pegamos uma mesa pequena no bar do primeiro andar.
A mesa era antiga, iluminada apenas pela luz fraca de uma luminária verde. Remus começou a aula me ensinando o alfabeto e os números, e então partimos para o vocabulário básico.
✰✰✰✰
— Como se diz "pergunta" em alemão?- perguntei, ao fim da nossa aula.
— "frage"- ele respondeu.
— Ok, eu tenho uma frage- eu disse, me certif i cando de que usei a pronúncia correta. — Como você conheceu meu irmão?
Remus puxou o caderno e olhou ao redor, considerando, eu acho.
— Ele comentou sobre o internato? - ele pergunta e eu assinto- Bem, eu me lembro de entrar no meu dormitório um dia e ter um garoto desconhecido sentado em uma das camas vazias.
— Você também esteve na França então?
— Todos nós, na verdade. Eu, James, Lily e alguns outros que você ainda vai conhecer. - Remus diz - Eu já conhecia James há uns dois anos quando Sirius chegou, cabelos longos, roupas chiques e completamente calado.
—Como assim?
— Sirius não falou por umas três semanas depois que chegou, dividimos o mesmo quarto por dias e ele só ficava lá, ia as aulas, comia e voltada, ele nunca dizia uma palavra sequer. Foi James quem falou com ele primeiro, eu ainda lembro da primeira vez que o vi falar — ele sorrir com a lembrança — E depois disso foi quase como se eles dois se conhecessem a vida toda, nunca mais desgrudaram um do outro.
Remus riu, e eu pensei na alegria de James ao ver Sirius na noite passada.
— E você? - pergunto.
— Eu demorei um pouco pra me acostumar com ele, na verdade. Eu nunca tive muitos amigos, James foi minha primeira amizade e quando Sirius chegou, eu me senti um pouco deixado de lado- Ele rir outra vez - É claro que depois de um tempo as coisas mudaram, de repente Sirius estava em todo canto, me seguindo. Ele ia até a biblioteca comigo, me fazia lanches e lia pra mim nas madrugadas em que não conseguíamos dormir.
— Isso parece mesmo coisa de gay- eu brinco e Remus rir.
—Bem, é - ele disse - Mas euu acho que me apaixonei por ele muito antes, quando ouvi ele me defender de uns garotos, estavam - ele hesita - Estavam comentando sobre as minhas cicatrizes e eu ouvi Sirius dizer que se falassem outra vez de mim, ele acabaria com eles, mesmo eu sabendo que ele nao machucaria uma formiga. Então, acho que foi ali.
De repente, me sinto feliz por Sirius ter tido uma boa vida além da nossa casa.
— Quando eu me dei conta - Remus continua- Já estavam namorando.
— Sem querer ser intrometido nem nada, mas como vocês saíram de um internato na França para Vienna?
— Ah, essa sim é uma coisa. Depois que terminamos a escola percebemos que não tínhamos pra onde ir, e de alguma forma, já éramos uma família, não tinha como nos separamos. Então decidimos nos mudar todos juntos, e aqui estamos, 6 anos mais tarde.
Remus terminou nossa aula com algumas frases úteis e me perguntou se nossa próxima aula poderia ser naquela mesma hora no próximo domingo. Me dei conta de que ele achava que eu ia mesmo ficar na Áustria. Eu precisava dar um jeito naquilo.
Hesitei para responder.
— Hm, claro.
Também me dei conta de que não havíamos falado sobre pagamento, o que parecia especialmente estúpido da minha parte, considerando que eu não tinha muito dinheiro.
— Quanto te devo pela aula?
— Não, não. Por favor — Remus zombou. — Eu não vou cobrar.
— Como assim? Sem essa. Por favor. — Comecei a tirar euros do bolso, mas Remus empurrou tudo de volta para a minha mão.
— Você é meu amigo, e também é irmão do meu namorado— Remus insistiu. Ele me segurou pelo pulso e olhou bem no fundo dos meus olhos. Eu quase tive um ataque cardíaco. — Não se preocupa com isso.
Sorri.
— Obrigado.
Ele me acompanhou até a porta e explicou como fazer para voltar pela rua, mesmo depois de eu dizer a ele que tinha o endereço de James salvo no celular. A
Agradeci mais uma vez pela aula e disse “tschüss”. Remus me corrigiu.
— “tschüss” é mais formal. Você pode usar “Bis bald"
— O que significa “Bis bald”?
— Te vejo depois — Remus disse.
Considerei minhas duas opções.
— Bis bald.
— Bis bald.