vinte e oito dias atrás

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Eu tinha que fazer o checkout do Airbnb naquele dia.

Acordar foi um sacrifício, não apenas porque minha cabeça pesava feito uma bigorna, mas porque as lembranças da ligação com meus pais estavam todas embaralhadas.

Eu só sabia que: não tinha dado muito certo, eles ainda não sabiam e eu não voltaria para casa.

Depois de arrumar a mala, fiquei parado do lado de fora, na Landstrasse, Distrito 3, a pequena rua com prédios antigos, motocicletas estacionadas contra as paredes e sussurros de conversas em alemão flutuando pelas janelas. Qual seria meu próximo passo?

Matei tempo em Vienna por algumas horas. Em um café. Em alguns degraus. E então me lembrei: James morava perto. Eu poderia pedir conselhos para ele - perguntar se eu deveria continuar em Vienna ou o que eu deveria dizer aos meus pais.

Ele parecia saber de tudo e já havia estado na mesma situação que eu, ou pelo menos quase, com seu pai americano.

Eu lembrava que o prédio de James ficava de frente para um café que também era uma galeria de arte em Landstrasse - "Gosto de observar as obras de arte pela minha janela", ele havia dito na noite anterior.

Eu não sabia qual era o apartamento certo, então interfonei para todos. Passei por vários austríacos irritados e confusos, mas, por fim, encontrei o apartamento de James. Ele me deixou subir.

Quando abriu a porta, ele estava terminando de abotoar uma camisa de manga curta estampada com vários dinossauros.

- Que surpresa! É o americano estrela- ele exclamou. - Estou me arrumando pra um jantar na casa da minha amiga Lily. Quer vir?

- Ah, não - respondi afobado. - Não quero incomodar.

- Não vem com desculpas pra cima de mim, Regulus. Estou te convidando. Aceite.

Foi impossível não sorrir. Ah, não é todo dia que se recebe um convite para um jantar austríacos. Poderia encontrar um lugar para ficar depois.

Aceitei o convite de James, ele disse para deixar minha mala em um canto do apartamento, ao lado de uma pilha de livros de poesia - ele não fez nenhuma pergunta -, e saímos.

O apartamento era gigantesco. Ocupava dois andares de um prédio em um bairro perto da Catedral. Era como entrar em uma galeria de arte, com estátuas de mármore e antiguidades espalhadas por todo o canto e várias pinturas penduradas por todo lugar.

O lugar pertencia a Lily Evans , que atendeu a porta e deu dois beijinhos na bochecha de James. lily vestia uma blusa cinza, short jeans e um cardigan branco por cima. Lembro dela, do bar na noite passada, a garota com a tatuagem do lírio.

Ela nos guiou por um cômodo ornamentado até um grupo de mulheres e um homens, todos conversando em torno de uma mesa.

O jantar só seria servido em uma hora, então ficamos pelo salão.

Todos pareciam ter vinte e poucos anos, como James. Ele me apresentou aos seus amigos, e me senti diferente de todo mundo ali. Não era só a diferença de idade. Um deles usava brincos de argola. Outra tinha sobrancelhas arqueadas impecáveis e tinha tatuagens lindas pelo corpo.

Eu achava que, quando estivesse entre pessoas iguais a mim, o encaixe seria como um sapato do meu número, mas, em vez disso, me senti usando salto alto pela primeira vez.

- Hallo, Lily- ouvi alguém gritar do cômodo ao lado.

Reconheci aquela voz, mesmo que antes eu só a tivesse escutado falando em inglês. O jeito como aquele ser humano perfeito invadia o espaço parecia uma avalanche. O cabelo castanho bagunçado. O rosto perfeitamente simétrico. Os braços musculosos-mas-não-muito e uma dúzia de cicatrizes a mostra por debaixo do casaco.

Eu estava parado ao lado uma pintura enorme - um campo de rosas- quando Remus entrou no salão.

- Eu me lembro de você! - ele disse, apontando para mim. Eu juro que morri bem ali. Possivelmente derreti e me misturei à pintura.

- Você é o garoto da livraria - Remus continuou e, desta vez, consegui sorrir.

- Pads não veio? - James interrompe, de repente ficando um pouco triste.

- Ele precisou resolver uma coisa do imóvel, mas prometeu que amanhã vai te visitar- Remus diz, o que pareceu deixar James extremamente feliz, seja lá quem for esse Pads.

Estávamos amontoados no canto da sala de jantar, longe de todo mundo. James, Remus Lily, eu e Mary, a moça de cabelos cacheados que estava no bar noite passada.

- Então, o James me disse que você é escritor - Lily falou, sem tirar os olhos de James. Sua voz era uma mistura de italiano com inglês da alta sociedade britânica, e se eu tivesse que descrever seu estilo, seria regata- cardigan-chique. - Você escreve livros?

- Não, não - James disse. - Ele é novo demais pra ser um romancista.

- Bom, nós nos conhecemos numa livraria - Remus comentou em meu favor.

- Pra onde você escreve? - Mary perguntou rapidamente.

Os quatro trocavam olhares entre si, como se já tivessem discutido minha longa carreira de escritor e preparado uma tese sobre ela.

Estava prestes a responder quando James me interrompeu.

- Sabemos quem você é, Regulus.

Congelei. Então James olhou para os outros, batendo com a mão no peito e caindo na gargalhada.

- Ai, isso soou bem mais dramático do que eu imaginei. O que eu quis dizer é que sabemos que você não é escritor.

- O quê? - respondi.

James me olhou de soslaio.

- Ah, sem essa. Você está escondendo alguma coisa. Tipo, você tem dezoito anos e está sozinho em Vienna pra "escrever". Por favor, né? Ou você é o príncipe nigeriano dos "escritores", está tentando dar uma de O talentoso Ripley, ou está tramando alguma coisa. Você não me engana. Agora, diz para a gente. Somos seus amigos. O que te trouxe pra Vienna de verdade?

Olhei ao meu redor, observando freneticamente as pinturas antigas e navios em miniatura espalhados pela sala. Não queria mais participar da conversa, queria ir embora. Mas também queria saber quem era esse tal de "talentoso" Ripley e se aquilo era um elogio. Mais uma referência que eu não conhecia. Eba.

Mas uma frase mágica me atingiu como tinta acertando uma tela em branco: Somos seus amigos, James havia dito, como um fato simples e direto.

Era assim que funcionava com os gays? Será que sentir atração por outros homens era, de certa forma, o bastante para dar início a uma amizade? A uma experiência compartilhada que nos uniria instantaneamente para todo o sempre?

Naquele momento, pareceu que sim. Parecia que aquelas pessoas haviam me aceitado no grupo por nenhuma outra razão que não fosse essa. E, nesse caso, era totalmente possível que eles entendessem o motivo de eu ter mentido. James, Remus, Lily e Mary - eles entenderiam o porquê de eu ter vindo para Vienna.

Decidi contar a verdade.

- Era pra eu ter me formado no ensino médio esta semana - contei. - Mas, em vez disso, acabei fugindo de casa porque... - Eles formaram um círculo ao meu redor, se aproximando como se estivessem prestes a ouvir um segredo. - Porque... - Fiquei nervoso.

Minha mente listou todas as merdas que eu teria que explicar: Marcus. A chantagem. Meus pais. Teria que explicar meu sistema de pontos, a tabela, a minha família.

E, de repente, me peguei pensando que talvez essas pessoas maduras poderiam não entender minha situação - poderiam me julgar por não ter coragem de pronunciar as palavras. De me assumir para meus pais.

Então mudei os planos.

- Meus pais me expulsaram de casa porque sou gay.

The explosion of everything Where stories live. Discover now