Central da SSU - Serviço de Segurança Ucraniano
Mirom Rotam
Contorno o escritório Central, estudando a estrutura magnífica do prédio da sede. Estaciono o jipe em frente e entro, sendo cumprimentado por alguns agentes e funcionários.
Sigo em direção ao departamento de investigações contra o crime organizado, onde Alexey me espera para seja lá o que é todo esse mistério patético.
Subo as escadas, passo por vários outros departamentos, até chegar no meu destino, encontrando com alguns agentes fazendo a guarda. Eles me saúdam com um aceno ao me aproximar, abrindo a porta para que eu entre.
Arqueio uma sobrancelha por estarem com as armas expostas, deixando-me curioso. Se estão tendo todo esse cuidado, as informações dentro dessa sala de reuniões devem ser sigilosas.
Entro, meus olhos vagam pela sala mal iluminada. Sentados à mesa, está Alexey que me olha sem nenhuma expressão, de um lado, há uma mulher com cabelos vermelhos e longos, do outro, um homem alto e forte que me encara com curiosidade. Olho para o telão além deles com fotos de mulheres, já podendo imaginar o significado desse encontro.
- Chegaste a tempo, Mirom. - Alexey quebra o silêncio, a mulher vira o rosto e prende seus olhos azulados nos meus. - Sente-se.
- Uma reunião muito importante, pelo visto. - Zombo, ele me ignora e aponta para a mulher.
- Está é Alyna Fedkovych e ao seu lado, seu companheiro Hamlet, ambos são diretores da ONG Mulheres por Mulheres. - Alexey os apresentam, ofereço apenas um aceno de cabeça, analisando-os. - Este é Mirom Rotam, um dos meus melhores agentes e investigadores da SSU.
- Prazer em conhecer-te. - Alyna, com a voz baixa e doce, me cumprimenta.
- E qual é o assunto? - Arrasto a cadeira e me sento, entrelaço as mãos sobre a mesa e aguardo com certa impaciência o que tem a dizer.
- Acabei de abrir um processo de investigação a respeito do tráfico de mulheres. - Alexey informa. - O Serviço de Segurança acatou o pedido dos presidentes dos direitos humanos, da ONG Mulheres por Mulheres e do presidente da Ucrânia. - Recosto na cadeira, meneando a cabeça e batucando os dedos sobre a mesa.
- E?
- Escolhemos você para liderar as investigações - anuncia.
Passo os dedos na sobrancelha com um sorriso gélido.
- O que lhe faz pensar que aceitarei pegar esse caso? - Deslizo meus olhos para os dois diretores, que me analisam com cuidado e em silêncio.
- O tráfico de mulheres para prostituição - Hamlet começa depois de alguns segundos -, é um dos negócios mais rentáveis do mundo, após o de drogas e de armas. Só que os índices de crescimento, está cada dia maior - explica. - Precisamos de agentes habilitados para enfrentar e destruir esse mal. - Inclino de leve a cabeça para o lado, estudando o homem que espalha alguns papéis pela mesa.
- Tráfico de mulheres? - indago, ele assente em confirmação, estendendo um documento em minha direção, não o pego. Hamlet pigarreia sem graça e entrega para Alexey, que apanha o papel.
- Todos os anos, milhares de mulheres são vendidas e obrigadas a se prostituírem, em condições de extrema desumanidade e violência - ele balança a cabeça, enojado -, e quando não tem mais serventia, são assassinadas.
Seus olhos se prendem com intensidade nos meus, cheios de esperança de que eu aceite esse caso. O problema é que não me importo com essas mulheres, se são traficadas ou mortas, elas não acrescentam nada na minha vida.
- E querem me dar o caso? - Me inclino, a mulher joga os cabelos por cima do ombro e lança um olhar para Alexey, que lhe dá um aceno de leve.
- Até há cinco anos, estas mulheres provinham quase que exclusivamente da Ásia e da América do Sul - ela arrasta alguns documentos em minha direção, tentando mais uma vez, despertar meu interesse -, mas hoje são, em número cada vez maior, vindas de vários outros países e estados. - Apanho os documentos, neles estão mapas, gráficos, números e nomes. - A Ucrânia, Mirom, é uma das principais origens deste tráfico.
- E finalmente conseguiram a atenção do presidente? - pergunto com indiferença, sem desprender meus olhos dos papéis.
- Sim, depois de anos de luta, conseguimos - responde, com a voz mais firme. - Os jornais responsáveis nunca falam sobre o que se passa. Ninguém tem consciência de nada. - Esclarece, com ênfase. - Eles temem não serem levados a sério.
- E as autoridades responsáveis? - pergunto, erguendo meu olhar. Alyna umedece os lábios.
- É uma guerra que muitos saem sem vida - responde, com a voz falha. - As garotas assinam contratos ou acreditam em promessas, muitas vezes porque os interlocutores são pessoas conhecidas, eles rodeiam minuciosamente e conquistam sua confiança. - Ela esfrega as mãos, deslizando seu olhar para o telão de fotos. - Mirom, tudo se passa como se a realidade fosse cor-de-rosa, mas tem um lado obscuro, que engana, finge e mata. Duas faces, que por serem da mesma moeda, são impedidas de ver-se uma à outra.
Sigo seu olhar, analisando cada rosto das mulheres desaparecidas, muitas mortas ao longo dos anos. Elas se perderam na promessa de uma vida melhor, tiraram sua liberdade, trancafiando-as em gaiolas sem fechadura.
- Por um sonho - Hamlet prossegue -, elas são exploradas e escravizadas sexualmente, para onde quer que sejam enviadas. - Olho para ele. - Não temos recursos suficientes para derrubar essa quadrilha, as autoridades não se importam, mas, depois de anos de lutas, perdas e fracassos, conseguimos. - Ele consegue combinar um sorriso com o olhar angustiado de Alyna.
- Mirom - Alexey me chama -, não é uma operação fácil, muitos que tentaram, perderam a vida, por isso, tu tens a escolha. Assim que aceitar, esses animais te verão como uma pedra no meio do caminho, e farão de tudo para te destruir. É algo obscuro, sujo... muito mais do que podemos imaginar - diz.
Meneio a cabeça e recosto outra vez, ficando calado por um segundo.
- Faz um ano e seis meses - falo, com a voz arrastada - que recusei um caso parecido. O que fazem vocês acreditarem que aceitarei dessa vez? - pergunto para Alexey, que continua sério, sem brilho no olhar. - Não me importo se essas garotas foram enganadas, traficadas ou o escambau, talvez isso nem exista. Quem garante que elas não queriam fugir de suas famílias, recomeçar em outro lugar?
- Pessoas morreram - Alyna rosna - tentando salvar essas mulheres. Tiveram famílias mortas, filhos, amigos, apenas para derrubar essa quadrilha.
- E ninguém foste preso? - indago, erguendo as sobrancelhas.
- Porque... - ela umedece os lábios. - Porque a corrupção corre solta em todos os lugares que você pensar. Eles forjam provas, escondem evidências, subornam, ameaçam, por isso... por isso que continuam destruindo vidas... essas vidas importam, Mirom!
- Ótimo - sorrio, me levantando -, porque não estou nem aí! - Olho para Alexey e jogo os documentos em sua direção. - Não aceitarei o caso, encontre outro. - Meu chefe apenas assente, sabendo que não mudarei de ideia, desde que me foi dado a escolha.
- Por quê? - Hamlet pergunta com a voz trêmula. - Por que tu não queres?
- Se essas garotas foram enganadas, problema delas. - Solto, com indiferença. - Foram burras, talvez mereçam todo esse sofrimento.
- Com tu podes falar isso? - Alyna se levanta, seu rosto fica vermelho de raiva. - Tu tens família...
- Não tenho família - corto-a e a vejo franzir a testa.
- E se fosse sua sobrinha? - questiona, em um tom baixo, cauteloso. Inclino a cabeça, e um sorriso frio serpenteia meus lábios. - É uma garotinha linda, se eles a vissem... eles a pegariam. Se ela fosse sequestrada? E se a esposa de seu primo fosse sequestrada? Se seu primo fosse assassinado por eles? Se sua prima fosse violada? - Uma risada sobe por minha garganta. Eles me encaram assustados.
- Pelo visto, andou investigando minha vida. - Estalo a língua.
- Sim, investiguei - confessa. - Foi preciso para não cometer erros, Mirom, precisei ser cautelosa e escolher a pessoa certa.
- Um erro... - Espalmo as mãos sobre a mesa e fixo meu olhar no seu. - Um erro banal, porque não faz ideia do que faço quando alguém xereta minha vida. - Intimido-a, mas ela se mantém firme, o que desperta em mim uma curiosidade interessante.
- O mundo dessas mulheres é apenas ruína, dor, sofrimento. Elas deixaram suas casas dizendo que voltariam, mas nunca voltam - Alyna fala. - Deixaram famílias sem respostas. Pais choram todos os dias para terem suas filhas de volta, nem que seja apenas o corpo. - Ela fecha os olhos por alguns segundos. - Você não sente compaixão?
- Deveria? - Ela abre os olhos marejados.
- Se coloque no lugar delas, nem que seja por um minuto - pede. - Ou imagine que alguém que tu amas, foi enganada e depois de anos, ainda busca por respostas. - Solto um suspiro.
- Precisamos de você - Hamlet fecha as mãos em punho. - Precisamos de você... - repete. - Gostaríamos de ter outra opção, de poder fazer tudo sem desilusões, mas estamos de mãos atadas. - Ele me encara com pesar. - Elas precisam que lutemos para tirá-las de lá, daquele inferno. - Solto uma risada ríspida, os encarando.
Tirá-las do inferno... inferno...
Porque eu devo tirá-las de lá, quando ninguém me tirou?
Viver no inferno não é tão ruim quando você aceita a escuridão dentro de si, você se torna um, e sem medo, a dor desaparece.
Esfrego meus dedos uns nos outros, buscando no poço dentro de mim o interesse nesse caso, só que não consigo sentir vontade, apenas indiferença. O curso do destino dessas mulheres poderia mudar, eu poderia resgatá-las, se assim desejasse.
Inspiro fundo e olho para Alexey, que esfrega a barba por fazer a espera da minha resposta, em silêncio.
- Procure por outro - digo, com mais firmeza.
- Tu não tens empatia? - Alyna indaga com uma mistura de raiva e desespero. - Precisamos lutar por elas.
- Que bom que elas têm vocês - replico, me afastando da mesa.
- Se não pudermos conter esse mal que habita - Hamlet insiste -, eles continuarão destruindo vidas. Falharemos com elas... com todas elas.
- Oh, que triste! - Zombo, dando as costas e indo para a porta.
- Mirom! - Alyna me chama, paro ao escutar barulhos de salto. - Sabe por que te escolhi? - Coloco as mãos no bolso do sobretudo e me viro, dando de cara com ela.
- Eu deveria saber? - pergunto.
Seu cheiro invade minhas narinas, seus olhos estão fervilhando no que parece ser angústia e tristeza. Ela ergue o queixo, me desafiando.
- Levei anos para conseguir convencer a todos que precisamos lutar. Ao longo desse caminho perdemos membros, fomos ameaçados e calados. Diretores antes de mim, morreram lutando por essas mulheres, estudei para estar aqui hoje. - Ela pisca para conter as lágrimas, arqueio uma sobrancelha, achando ridículo essa sua insistência. - Tu não conheces essa dor, Mirom, a dor de não ter respostas.
- Tu já tens a minha. - Dou as costas e seguro a maçaneta.
- Tu és sujo - congelo assim que suas palavras me atingem. - Displicente, insano, frio e sem empatia - viro lentamente e prendo meus olhos nos seus. - Sua ficha está limpa, mas a sua vida não. Conheço toda a sua podridão, isso não te faz diferente deles. - Curvo o canto do meu lábio e solto a maçaneta, chegando mais perto dela.
- Admiro sua coragem - digo em um sussurro mortal.
- A insanidade está em seu sangue - retruca. - Apenas o próprio diabo poderá destruir esses demônios, e você, Mirom, é o diabo que escolhi. - Fico encarando-a, o silêncio se torna pesado. - Você não tem misericórdia, compaixão e não é influenciável, suas veias queimam violência, mas além de tudo, talvez possa encontrar o paraíso nesse inferno. - Termina, dando um passo para trás, solto uma risada ao abrir a porta.
- Não seja patética - digo e saio com a certeza de que esse caso, não pegarei.
Jogo as chaves sobre a mesa assim que chego em casa. Tiro o sobretudo, dobro as mangas da blusa e sigo até a cozinha, escutando unhas colidir no chão de madeira ao se aproximar.
- Como foi seu dia? - pergunto, pegando um copo e a garrafa de uísque. - Espero que tenha sido emocionante - encho o copo até derramar. - O meu foi uma droga! - Fico encarando a bebida.
Axel bufa, atraindo meu olhar.
- Foi tão desprezível quanto você - consto, a Rottweiler entorta a cabeça para o lado, estremecendo suas orelhas. - Ainda bem que tu não falas. - Apanho o copo e dou um gole, encarando seus olhos castanhos e sua testa franzida. - Estou sendo patético conversando com um animal.
Axel bufa de novo, parecendo ansiosa e inquieta. Reviro os olhos e vou preparar sua comida com um vazio infinito na mente. Deixando-a devorando sua ração, pego o copo e subo as escadas em direção ao meu quarto.
Hoje parece estar mais frio e solitário que os dias normais, está silencioso demais. Olho para o fundo do copo, esperando sentir algo me aquecer ou iluminar as trevas que me inundou.
Deixo o copo em cima da cômoda assim que entro, tiro a camisa e estudo as cicatrizes que serpenteiam meus braços. Odeio cada uma delas por mostrar que ainda estou vivo e respirando.
Abro a gaveta, meus olhos se prendem no revólver repousado em cima das minhas roupas. Percorro meus dedos sobre ele, acariciando o único que tem a salvação que busco diariamente. Apanho a arma e confiro o tambor, que contém apenas uma bala.
Tiro-o da gaveta e o seguro firme, o revólver pulsa alegre em minha mão, sabendo o quanto detesto a estrada solitária que percorro e que me leva para o nada. Minha mente é um emaranhado de insanidade, os sonhos nunca fizeram morada, talvez seja por isso que não sinto nada.
Olhando para o teto, sentindo novamente os demônios contornando-me, preparados para me torturarem, e mergulho nas sombras, sentindo-me mais cansado do que antes.
Pego o copo, dou um gole e paro em frente ao espelho, prendendo meus olhos no homem morto diante de mim. Sem brilho no olhar, sem felicidade, apenas uma carcaça humana. Aquele que odeia o mundo e que pouco se importa com o que acontece.
Dou mais um gole no uísque, o álcool desce pela garganta ao mesmo tempo em que ergo o revólver e aponto na minha têmpora, sinto o frio beijar minha pele em uma carícia prazerosa.
As pessoas vivem todos os dias com um propósito que as fazem lutar diariamente, na esperança de que nada dê errado, mas e quando não existe um propósito? Não existe motivo para lutar?
Pressiono o dedo no gatilho, bebericando o uísque e me encarando nos olhos, buscando uma chama viva dentro de mim que justifique continuar aqui. Minha alma está tão perdida que não a sinto mais, estou apenas esperando minha hora chegar... a hora que tudo vai acabar... o silêncio e o vazio já não reinarão.
Aperto o gatilho, a arma engasga, sorrio.
A morte me rodeia, todos os dias, mas nunca me agarra, é como se cada vez que tentasse acabar com tudo, fosse o motivo dela se afastar, ir para longe.
- O que você está esperando? - pergunto, apertando o gatilho outra vez. - Pelo que tenho que lutar? - Engatilho e aperto o gatilho, nada... nada acontece.
Fecho a mão em torno do copo com mais força quando começo a tremer, meus olhos ficam incandescentes e vermelhos, minhas veias pulsam no instante em que meu sangue ferve.
- Por quê? - indago. - Por que continuo aqui?
Cada pergunta sem resposta é sinal de que meu coração está morto. Aperto o gatilho mais uma vez, lágrimas escorrem por meu rosto como um rio em chamas que queima a rosa lentamente, sem esperanças. Não vou lutar contra o que quero, porque as escolhas são minhas, é o destino que escolhi.
Um resmungo interrompe meus pensamentos doentios, despertando-me do breu. Meus olhos deslizam até a Rottweiler parada na porta, me fitando com frieza. Afasto a arma da minha têmpora e aponto para sua cabeça. Axel se senta sem desgrudar seus olhos de mim.
- Por que não consigo te amar? - Ela solta a respiração e se deita, pousando a grande cabeça nas patas.
Abaixo o revólver e dou outro gole no uísque, andando até a cômoda e devolvendo a arma para seu devido lugar. Ao seu lado, encontra um canivete, apanho e me sento no chão, recostando as costas na cama.
Axel permanece deitada, me observando. Respiro fundo, coloco o copo no chão e levo a lâmina até meu braço, pressionando sobre minha pele. Trinco os dentes ao fazer um corte, assisto o sangue viscoso escorrer e pingar no chão. Fecho a mão em punho e suspiro.
Essa é a única dor que acredito sentir, a que me mostra que ainda estou vivo, mesmo estando morto por dentro. Recosto a cabeça no colchão e encaro o teto. Em meu braço, escorre um legado de memórias cruéis que revivo todos os dias, e em silêncio, aguardo sentir algo, desejando que meu nome seja chamado.
Para muitos, a morteé uma punição, para mim, a morte é a minha única salvação.
Ahhhhhh, estamos oficialmente de volta meninas.
Gostaram dos primeiros capítulos?
Mirom é uma incógnita, extremamente quebrado e tem seu próprio jeito de lidar com o vazio que sente.
Será que Mirom aceitara esse caso?
O livro é forte, intenso, faz a gente parar para respirar e refletir sobre muitas coisas.
Os capítulos de hoje é a amostra dos que virão pela frente.
Vou ficar de olho no engajamento e surtar também. 😱
Beijo e até o próximo capítulo 😘