❈ Ano 852 ❈
Ethan Krause
Yelena me encarra impaciente quando volto a repetir a mesma pergunta talvez já pela décima vez, a esperança de que ela mude sua resposta se esvaindo a cada vez que a repete, fazendo com que eu erga as mãos em desistência e me vire para a amurada do barco, apoiando os cotovelos e suspirando.
- Foram as ordens de Zeke. - Ela se aproxima. - E você nem sabe se ela está viva. Duvido que tenha sobrevivido.
- Amarie está viva. - A interrompo antes que diga mais alguma coisa e a mulher se mantém em silêncio. A ideia de que Amarie não está mais entre nós me causa calafrios quando surge nos meus pensamentos. - Ela é mais forte do que parece.
Yelena suspira outra vez e então se afasta. Estou novamente ali, depois de malditos dois anos, observando o barco se aproximar do porto de Paradis, que não parece tão diferente do que era antes. Nossa missão era investigar o desaparecimento de outros barcos que haviam sido enviados para reconhecimento posteriormente e desaparecido. Cerro meu maxilar tentando imaginar o motivo enquanto o medo se mistura à ansiedade crescente na boca do meu estômago.
Amarie não está morta.
- Ela quase te matou. - Falei para a garota jogada no chão da enfermaria, encolhida. - Não deveria ter falado com Pieck daquele jeito.
- Foi mais forte do que eu, quando percebi já havia dito. - Ela suspirou, tentando se levantar e aceitando minha mão estendida. - Precisa de mais do que umas muletas para me matar.
- Não a subestime. - Eu disse em tom de advertência e então olhei bem para o rosto da garota que havia acabado de se colocar de pé.
O primeiro pensamento que me ocorreu é que tenho certeza de que já a vi em algum lugar, afinal. O cabelo loiro comprido solto até sua cintura e o rosto fino, mesmo que estivesse com alguns machucados, era o mesmo que vi alguns dias antes, quando fui parar no consultório de Angela depois de uma briga. A garota pareceu me reconhecer também e sorriu sem graça.
- Eu lembro de você. - Ela disse, parecendo constrangida e desviou os olhos dos meus imediatamente. - Eu sinto muito...
- Não fale, está tudo bem. - A interrompi de imediato desejando evitar qualquer assunto acerca da morte do meu irmão. Ergo o braço na direção da garota, lhe oferecendo apoio para caminhar. - Venha, deixe eu te ajudar.
Me lembro daquele dia com nitidez, como se aquilo tivesse acontecido ontem. Amarie foi incompreendida pela maioria, que a enxergou apenas por seus erros do passado. Entretanto, acredito que ela pagou por todos eles quando a família a expulsou de casa. Ela jamais havia sido rude comigo ou feito qualquer coisa para me magoar de propósito. Algo em minhas entranhas grita que ela ainda está viva e que voltaria para casa conosco, mesmo que Zeke tenha nos dado ordens claras para a levar de volta para Liberio à força, se precisasse. Reluto em o obedecer mas me preocupa saber que Yelena o faria sem ao menos hesitar.
Sou arrastado para a realidade quando sinto a embarcação balançar de forma brusca sob meus pés, que vacilam e se enroscam um ao outro quando o convés treme outra vez e um estrondo chega aos meus ouvidos. O grito que ameaça salvar para fora da minha garganta quando o titã se faz visível diante de mim é silenciado pela súbita falta de ar que me acomete quando as botas deslizam sobre o convés molhado quando o barco é erguido alguns metros para fora da água.
Seguro forte as barras de metal na lateral do navio e fecho os olhos com força, os abrindo novamente para ver os olhos verdes e brilhantes do titã que observa o convés por alguns segundos antes de dar o primeiro passo em direção à terra firme. Meu corpo inteiro treme e parece congelar, mas o sacudir da embarcação quando o titã caminha é forte o suficiente para fazer com que meus dedos se soltem do metal gélido e meu coração dispara diante da queda que há abaixo de mim.
Fecho os olhos novamente e estico as pernas, indo direto em direção ao mar agitado abaixo de mim.
Amarie White
- Não é possível! - Exclamo, jogando as cartas do baralho sobre a pequena mesa e continuo sob uma risada de Erwin. - Está roubando, Comandante.
- Você não sabe jogar, admite. - Lina acompanha Erwin. Reviro os olhos para os dois e cruzo os braços, me recostando na cadeira de metal que vacila um pouco no chão de terra batida.
Suspiro encarando o teto de lona da barraca e sentindo a vontade de rir se desfazer aos poucos quando ouço no porto o estrondo abafado que indica que Eren se transformou em titã outra vez. Mais um barco de soldados enviado por Marley, provavelmente com ordens para descobrir o que aconteceu com os anteriores, que não deram mais nenhuma notícia. O leve tremor abaixo de nós faz uma sensação desagradável subir pelo meu corpo como um calafrio. A guerra parece cada dia mais eminente.
Os últimos dois anos haviam sido perturbadores, em partes. Um treinamento intenso que por pouco não me matou algumas vezes, além de soldados feridos e mortos nas expedições que exterminaram o que havia sobrado dos titãs na ilha. Entretanto, tanto tempo pareceu ser suficiente para ganhar a confiança das pessoas, especialmente de Erwin, que após a noite na praia, se aproximou o suficiente para que eu lhe dissesse coisas sobre meu passado que mais ninguém aqui sabe, assim como fiz descobertas interessantes sobre o Comandante da Divisão de Reconhecimento.
- Marie, você está bem? - A voz de Lina corta o ar em minha direção e encaro a menina, que ajeita o cabelo agora curto recém cortado atrás da orelha. - Está vermelha.
- Não é nada. - Respondo rápido, sendo salva de mais perguntas por Levi, que entra e para diante de Erwin ignorando completamente nossa presença ali. Apesar de tudo, minha relação com Levi não mudou muita coisa, o baixinho continua mau humorado na minha companhia e sempre disposto a me castigar com qualquer tarefa relacionada à limpeza.
- Precisa vir, Hange está conversando com eles mas o teatrinho dela não vai dar certo. - Levi diz de uma vez só e Erwin assente.
O loiro se levanta e faço o mesmo, caminhando atrás dele com Lina em meu encalço. Ele para de súbito e se vira, colocando uma de suas mãos em meu ombro.
- Fique com os outros. - Ele inclina a cabeça na direção de Sasha e Mikasa, se virando para Lina logo em seguida: - E você volte para a sua barraca.
A menina assente e se despede rápido com um aperto em minha mão. Olho outra vez para Erwin antes de o obedecer também. Não demora até que a visão do Titã de Ataque carregando o navio em seus ombros se forme diante de nós, logo depois das pedras que nos separam da praia. Sasha se mantém abraçada ao rifle que tem em mãos, apoiando a cabeça sobre a coronha da arma, parecendo entediada.
- Não aguento mais isso. - Ela boceja quando me aproximo, deixando o objeto de lado para escorar-se em mim. - Quero voltar logo para o quartel.
- Todos queremos. - Resmungo em concordância. - Não aguento mais ficar acampada aqui, já fazem semanas.
- Precisamos saber o que eles pretendem. Vocês deveriam parar de reclamar. - Mikasa nos repreende seca e resmungo. A garota ajeita o cachecol em torno de si e volta a observar a conversa que se desenrola aos gritos entre Erwin e a mulher alta de cabelo loiro no convés do navio assim que ele foi colocado sobre a terra. Eren também observa tudo imóvel logo atrás deles, pronto para agir diante de qualquer reação.
Não filtro as palavras que são ditas em nenhum dos lados enquanto observo os soldados com atenção, buscando um único rosto conhecido que fosse em meio aos uniformes iguais. Duvido que enviariam Ethan em uma missão como esta tendo em vista o soldado excelente que é, mas ainda assim anseio por ver ele ou Angela outra vez, mesmo que seja apenas para uma despedida. Eles são o que havia sobrado da minha família além de Lina e longe deles, os últimos dois anos haviam parecido ser quatro.
- Tem alguém ali. - Sasha diz de súbito, atraindo minha atenção e a de Mikasa.
- Ele caiu do navio? - Mikasa indaga, cerrando os olhos para tentar enxergar o homem que se arrasta sobre a areia escura com dificuldade.
Entretanto, permaneço imóvel e incapaz de responder enquanto pisco os olhos algumas vezes me certificando de que aquela imagem é real. Não preciso de muito esforço para o reconhecer ali, bem diante de mim como uma prece atendida diante dos meus pensamentos recorrentes acerca dele. Arfo algumas vezes buscando qualquer palavra dentro de mim e encaro as outras garotas ao meu lado, sendo impossível me conter.
- É ele. Sasha, eu não... - Aperto o pulso da garota e o balanço algumas vezes, soltando assim que minhas pernas parecem começar a se moverem sozinhas por cima das pedras, descendo com cuidado em direção à areia. - Ethan!
O grito que sai com toda a força dos meus pulmões é alto o suficiente para interromper quaisquer que sejam as negociações entre o Comandante e Yelena e atrai a atenção das pessoas ao redor para mim, que caminho desajeitada na areia molhada, quase correndo na direção do garoto, que desfalece quando parece desistir de tentar se levantar. Assim que me aproximo e confirmo que, de fato, é Ethan quem está diante de mim, caio de joelhos ao seu lado, afundando um pouco quando faço força para o virar de barriga para cima.
- Ah, merda. - Resmungo, passando os dedos em seu rosto para tirar a areia de cima dos seus olhos e do corte que se estende de sua testa até uma de suas orelhas. O sangue escorre em um filete pela pele molhada e o balanço pelos ombros algumas vezes, afinal, ele ainda respira sem problemas. - Vamos, Ethan. Acorde! Eu estou aqui, anda logo!
Ergo o tom de voz e é inevitável sorrir aliviada quando ele abre os olhos, as orbes esmeralda girando algumas vezes até se encontrarem com os meus olhos arregalados para ele. Ethan de súbito ergue o tronco desajeitado e se inclina na minha direção, tossindo um pouco em seguida.
- Amarie. - Ele diz devagar entre outra crise de tosse e assento, vendo um sorriso se abrir em seu rosto também. - Eu sabia que você estava viva.
Ethan me puxa contra si e me aperta em um abraço, uma de suas mãos indo de imediato até a minha cabeça, a mantendo apoiada em seu ombro por alguns instantes antes que eu me separe dele, franzindo o cenho diante do calafrio que se espalha pelo meu corpo.
- Você está congelando, aqui. - Em um movimento rápido, ergo meu tronco e desabotoo a capa, jogando as asas da liberdade sobre ele logo em seguida. Ethan se agarra ao tecido talvez instintivamente mas me encara com uma expressão confusa no rosto.
- O que você está vestindo, Amarie?
- Ethan, eu...
Começo a me engasgar nas palavras mas me interrompo quando ouço meu nome ser chamado. Agradeço por um instante por não ter de explicar nada a ele naquele instante, entretanto o olhar de Levi sobre mim faz com que eu deseje estar do outro lado do oceano agora.
- O que está fazendo? - O Capitão se dirige a mim e avança alguns passos, sendo impedido por Ewin.
- Eu o conheço. Ethan não é um inimigo. - Me coloco de pé.
- Tudo o que vem de lá é inimigo, pirralha. - Levi suspira, cruzando os braços em seguida. - Se certifique que esse aí não vai morrer, Connie e Jean vão o prender com os outros.
Estou prestes a concordar com a ordem dada a mim quando a voz grave do Comandante se sobressai em um "não" bastante sonoro. Tanto Levi quanto eu nos viramos para ele, que tem as sobrancelhas unidas em uma expressão que não lhe é comum: Erwin está com raiva.
- Hange cuidará disso. Preciso falar com a senhorita White sobre suas atitudes. - Ele declara e faz um sinal com a mão para que eu o siga. Olho para Ethan outra vez por cima dos ombros e me afasto dele, relutante em obedecer a Erwin.
De todas as pessoas ali, ele é o único que sabe que Ethan é alguém muito importante para mim.
Assim como o próprio Comandante.