Prólogo

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"Em certos momentos, os homens são donos dos seus próprios destinos" (William Shakespeare)

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- Apreensão, aterramento, amedrontamento...

- Shhh, fica quieta Lívia – Danny sussurra do outro lado do quarto em sua cama, tentei respirar, mas o ar já havia sumido do quarto, estava tentando a horas dormir, mas batidas constantes e os gritos não me deixavam dormir, e pelo jeito nem Danny conseguia.

Isso era parte da minha vida, a falta de ar, os sussurros aflitos, os gritos, as pancadas na parede, e até mesmo a chuva parecia ser parte desse cenário. Victor-Marie Hugo, um romancista muito famoso um dia disse "As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade", eu concordo com ele, na verdade fiz disso uma prática, a cada momento utilizo palavras para descrever como estou me sentindo, são sinônimos, são extensões de mim.

Crack!

Meus olhos se abriram novamente, tentei me sentar sem fazer barulho e vi que Danny fazia o mesmo do outro lado, mesmo que eu só visse o reflexo branco de seus olhos, sabia que ele estava tremendo tanto quanto eu. E não era por causa do barulho de vidro quebrando, mas o silêncio que seguiu.

O único som da casa, era a chuva batendo na janela e os passos se aproximando da nossa porta, e nem eu e nem Danny podia fazer nada quanto a isso, fixei os olhos no trinco da porta e segurei a respiração, e essa última parte nem foi difícil, já que vinha segurando a muito tempo, como se estivesse debaixo d'água.

Esperei a batida, esperei o grito e os olhos vermelhos, mas não foi isso que vi, o que eu e Danny ficamos olhando foi a mamãe entrar no quarto, descalça, com os cabelos escapando de seu rabo de cavalo, os olhos inundados de lágrimas contidas, mas só o que meu olhar focava era sua mão, a mesma mão que carregava a aliança de ouro, manchada de sangue. Será que ela sabia que estava machucada? Ou ela já não sentia depois de tantos anos?

- Arrumem suas coisas, só levem o que precisam, nada de bonecos, ou qualquer tipo de brinquedo, vocês tem 5 minutos – Antes de se virar para sair, ela falou nos encarando – E sem barulho.

Sabe aqueles filmes que passam na Tv, que mostram pessoas guardando suas roupas em menos de segundos, como se uma fada tivesse feito o seu trabalho com um simples passe de mágica? Foi isso que aconteceu comigo e Danny, em um momento estávamos deitados e em outro estávamos em pé jogando tudo na bolsa, mas não tinha fada e muito menos efeitos especiais, era a adrenalina correndo no sangue, era o desespero infiltrado na nossa pele, era o olhar de medo da nossa mãe que nos fez chegar a porta em menos de 5 minutos segurando a mochila da escola nas costas. Na mão de Danny o único presente que recebeu do papai, uma peça de xadrez que ele dizia não gostar, mas levava para todo canto, a única diferença é que a sua mão tremia em volta da peça, como se estivesse prevendo o que aconteceria.

Mamãe fechou a porta do quarto dela com cuidado e trancava com uma chave, depois disso caminhou até o balcão e pegou as chaves do carro, enquanto eu e o meu irmão só ficávamos encarando como em um transe, hipnotizados.

- Vamos agora – Mamãe pegou em minha mão e me arrastou porta afora, não se importando que a chuva me molhasse e que eu tivesse uma recaída de novo, simplesmente foi andando, quase correndo até onde o carro do papai estava. Abriu a porta do carro e esperou eu e Danny entrar, batendo a porta logo em seguida. E foi horas depois, em direção a algum lugar que só ela sabia onde ir, que me dei conta que ela não carregava consigo nem uma única bolsa, acho que mamãe leu aquela frase que dizia para deixar todas as coisas no passado, mas o que ela iria vestir quando chegasse ao destino?

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Abri os olhos com algum esforço, me encolhendo ainda mais quando senti o ar entrando pela janela da frente, a chuva tinha aumentado, e escorria pela janela como uma pequena cachoeira particular. Daniel ainda dormia encostado em uma posição que parecia ser ruim para seu pescoço, tentei empurrar de leve sua cabeça, mas só o que consegui foi um resmungo e o virar da cabeça para a mesma posição de antes só que do outro lado, dei de ombros, era melhor do que nada. Um relâmpago cortou o céu, como se dividisse em dois, e o clarão me permitiu ver a peça de xadrez jogada no carpete do carro, olhei para cima e vi que Danny ainda dormia, mas sua mão estava caída aberta no banco.

Peguei a pecinha e já ia colocando em sua mão de novo, quando senti algo em baixo da peça, uma inscrição, bem pequena em contraste com a peça prata e gelada. Continuei segurando a peça ao contrário e quando o próximo relâmpago apareceu consegui ler a breve inscrição.

                             "O peão é a causa mais frequente da derrota" (W. Steinitz)

- O que você está fazendo? – A voz calma da mamãe depois de tantas horas em silêncio e o fato de eu estar bisbilhotando me assustou o suficiente para eu guardar a peça no bolso do meu casaco.

- Só olhado Daniel babar no próprio casaco – A mentira escorregou fácil dos meus lábios, mamãe me olhou pelo espelho retrovisor seus olhos estavam vermelhos, não sei se pelas horas passas dirigindo ou se de tanto chorar enquanto dormíamos – Para onde estamos indo mãe?

Ela suspirou profundamente, como se estivesse com dor ou falta de ar, acho que isso era de família, ter ar em nossa volta mas não conseguir respirar.

- Vamos para a casa de alguém que eu não vejo a muito tempo – Quando via que eu ia abrir a boca para perguntar quem era, ela simplesmente balançou a cabeça e falou sussurrando – É uma surpresa, agora durma, acordo você quando chegarmos, eu prometo.

Assenti com a cabeça enquanto tentava não insistir na pergunta, tinha medo de perguntar e ela começar a chorar de novo, então me contentei em olhar pela janela do carro, olhando as árvores quando outro relâmpago cortava o céu. Coloquei minha mão dentro do bolso e apertei mais firme a pecinha de xadrez.

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- Acorda – Danny me sacudiu, tentei abrir meus olhos enquanto me ajustava a claridade, o sol a muito tempo já havia nascido, o que quer dizer que viajamos a noite inteira e a metade da manhã também, o que justificava a minha fome. Bocejei e tentei me espreguiçar dentro do espaço minúsculo do carro.

Olhei pra fora e vi que o carro estava estacionado em frente a uma linda casa de tijolos, de cor bem clara, como se o sol tivesse batido ali e tivesse desbotado a sua cor. Me virei para Daniel e vi que ele olhava para a mesma casa, mesmo que tivesse outras bem parecidas ao lado, parecia que a gente tinha chegado a uma pequena cidade, e que fazia calor.

- Cadê a mamãe? – Comecei a tirar o casaco já que estava muito quente e os vidros fechados do carro não estavam ajudando.

- Ela saiu faz alguns minutos, e entrou naquela casa, até agora não saiu

- Ela deve estar falando com alguém que ela nunca mais viu – Dei de ombros – Pelo menos foi o que ela disse.

Daniel suspirou e se encostou no banco de novo.

- Você viu a minha pecinha? Eu acho que deixei ela cair mas procurei e não achei

- Pra quê você quer ela? Você mesmo disse que não gosta

- Porque é minha, se você estiver com ela, me devolva – Ele estendeu a mão esperando, e quando eu ia inventando outra mentira, mamãe saiu correndo da casa, com o rosto vermelho como se estivesse corrido uma maratona, as lágrimas em seu rosto corriam pela sua face como se fosse a chuva de ontem à noite, sem fim

Ela entrou dentro do carro bateu a porta e colocou sua cabeça encostada no volante do carro, seus soluços ecoavam dentro do pequeno espaço. Olhei para a casa, a porta ainda estava aberta e vi um breve reflexo, foi muito rápido, mas o suficiente para saber que era uma mulher.

Mamãe ligou o carro, enxugou os olhos, e começou a sair do local com uma rapidez nunca vista por mim, ela estava com muita raiva, seu rosto inteiro estava tenso. Olhei para trás para ver se a mulher tinha saído da casa, mas só o que vi foi uma rua vazia, com uma porta agora completamente trancada.

- Mãe? O que...

- Está tudo bem querida, vamos para outro lugar – Ela olhou para nós pelo retrovisor, e viu o mesmo que eu tinha visto ao olhar de volta, era o rosto de duas crianças famintas, cansadas e com muito medo. Acho que isso fez tomar aquela decisão, só não sei o que a fez pensar que seria o melhor para nós – Vou deixar vocês em lugar seguro.

Era uma pena que a gente não pensasse da mesma forma.

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