Capítulo 4 - Os Dois Mundos

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As noites e os dias no mundo de cima -pelo que eu me lembrava- eram extremamente longos comparados ao tempo que duravam ali embaixo. Eu costumava tomar o pequeno almoço com os tios e os primos -as refeições eram feitas em família, tradicionalmente, todos sentados na mesa da sala de jantar que tinha a conta certa de cadeiras, doze no total. Éramos organizados de forma que pudéssemos ajudar uns aos outros. O tio e a tia ficavam ambos em uma ponta, ao lado deles os mais novos, seguia-se dos mais velhos repartidos pelos dois lados da mesa e na outra ponta o restante. A mesa era grande e larga para ter espaço suficiente para todos os pratos e tachos. As cadeiras confortavelmente almofadadas em amarelo e roxo para combinar com os quadros artisticamente (no nível de uma criança) feitos pelos três mais novos da casa, e todos comíamos até que nos fartássemos.

Os tios não eram ricos, haviam meses em que o trabalho lhes rendia menos lucro e todos recebiam menos, mas nunca deixaram faltar nada para nenhum dos filhos, e assim que cheguei, à mim também nunca me faltou nada, em especial momentos que serão para sempre lembrados. A casa era relativamente pequena para a quantidade de pessoas que viviam nela. Éramos dois adultos e dez crianças. Haviam uns quantos cómodos e um jardim, nada muito espaçoso, vivíamos assim amontoados e era impossível estar sozinho por mais que quiséssemos. Nos primeiros dias em que estive morando com eles, esse foi o meu desejo, estar sozinha, e o conseguia por breves minutos quando as outras crianças da casa iam para o lado de fora brincar e eu ficava na sala de estudo lendo livros ou no quarto emburrada em um canto da cama, assim que elas invadiam o meu espaço correndo e fazendo o barulho que toda criança faz, eu imediatamente ia para o lado de fora. Sentava em um dos balanços e pensava em tudo e em nada. Nas refeições, como era regra da casa e não podia ser de forma alguma quebrada, não se podia comer nos quartos, eu precisava a todo custo descer e me sentar com todos eles, entretanto, eram atenciosos o suficiente para entender o meu aborrecimento e por isso enchiam meu prato, me deixavam comer e voltar a seguir para o quarto, sem dizer uma única palavra.

Para uma criança da idade que eu tinha quando essa mudança aconteceu (a inocência dos oito anos) as coisas passam sempre despercebidas. Vemos mas não entendemos e quando fazemos perguntas somos facilmente persuadidos pela mentira acompanhada de um sorriso. E é engraçado ver como o crescimento é acompanhado da suspeita e do aclaramento da visão, o mundo, as palavras, os olhares, se tornam tão óbvios e decifráveis. É engraçado e é doloroso entender tudo. Nesse tempo em que eu me sentava sozinha no balanço e fugia de todos da casa eu ainda não entendia o motivo de precisar ficar na casa dos tios, eu queria a todo custo ter ido com meus pais para onde quer que eles tivessem ido e tinha impregnado na cabeça a ideia que eu não era importante para eles, já que tinha ficado para trás. Meus pais não esconderam a deixa deles de mim, no dia em que receberam a proposta me contaram o que iria acontecer durante o jantar. Por isso, semanas antes de chegar na casa dos tios eu já sabia que iria lá viver, tive tempo para me despedir da minha casa e de Manchas, minha cadela, que não pode ir comigo devido à falta de espaço na nova casa. Tive tempo suficiente para chorar e implorar que me levassem com eles, o que como podem ver não resultou. Desde o primeiro momento a decisão de que eu ficaria era para eles concreta e firme, nada os fez e nem chegaria a fazer com eles mudassem de ideia. Eles sabiam o porque precisavam fazer esse sacrifício, eu é que não.

Também tive um longo período de tempo para me sentir irrelevante, furiosa e infeliz.

Esses sentimentos costumam ser marcantes para um adulto, contudo, para uma criança, são coisas que se esquece facilmente. Eu não deixei de pensar nos meus pais e nem em como sentia falta deles, mas o ambiente e as pessoas que nele estavam não me deixaram ficar amuada por muito mais tempo. Todo verão os tios ajudam no evento de doação para os orfanatos da cidade, como são donos de um restaurante, doam comida -ainda nos pacotes ou já feitas. Ajudam na arrumação e na recolha e organização dos bens ganhados. Todas as crianças da casa também participam, fazem visitas ao local e passam os dias inteiros com os que lá vivem, e quatro meses depois de estar trancada em um quarto, participei pela primeira vez. Fui convidada muitas vezes para entrar nas brincadeira com as dezenas de crianças que viviam no lar, eu aceitei umas quantas vezes mas logo me cansava e optava por ajudar os tios com coisas de alimentação, ficava encarregada de levar e trazer potes, pratos e sacos de comida. Em uma dessas ajudas ouvi Lucas, que embalava algumas latas, dizer que sentia saudades daquele lugar seguido de um suspiro tristonho. O tio deu-lhe rápidas palmadinhas de conforto no ombro enquanto passava por ele atarefado.

O Conto de Gautama: A Viagem de JaimeUnde poveștirile trăiesc. Descoperă acum