♾ 02 | Celina

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A pergunta foi seguida pelo baque surdo das botas do rapaz tocando o solo. A garota estava em choque, estirada e praticamente imóvel sobre os cotovelos. Seu coração batia forte contra o peito e a dor provocada pela mordida parecia estar irradiando para o resto do seu corpo. Sua mente processava, com dificuldade, todos aqueles acontecimentos, talvez tentando classificar qual deles ganharia o posto de mais louco. Ela tinha quase morrido, por causas completamente diferentes, duas vezes só nas últimas horas, e uma voz na sua consciência gritava que ainda não estava fora de perigo.

O rapaz deu um passo em direção a claridade da lua, tornando possível distinguir mais traços de seu rosto e detalhes do corpo. Usava roupas estranhas, que misturavam peles de animais, correntes e peças de metal. Também guardava outras armas brancas, além do arco e flecha, em coldres dispostos na perna e quadril. Era uma figura um tanto quanto primitiva e sob aquele contexto, também era arrepiante.

A garota estava tão desconcertada que nem se lembrava da pergunta que o rapaz fizera. Do que ele a chamara? Ski...

— Você está quase em território Azgeda. Não sabe que foi por aqui que capturaram Clarke? — questionou ele de maneira brusca, enquanto caminhava na direção da garota.

A distância cada vez mais reduzida entre os dois pareceu ter despertado a menina. Rapidamente e de forma bem desajeitada, ela se colocou de pé, não conseguindo reprimir uma careta como reação da dor que sentia em uma das pernas.

O rapaz postou-se diante dela. Os olhos estreitos eram cinzentos e tempestuosos, ele tinha um nariz largo e uma barba castanha, quase ruiva; Não devia ter mais que 25 anos de idade. Era dono de uma postura rígida e segura; parecia a vontade na floresta, como se a conhecesse muito bem, como se fosse sua casa.

— Você me conhece? — perguntou ela, a voz arranhando as cordas vocais.

O rapaz ergueu ligeiramente uma das sobrancelhas, a expressão hostil e desdenhosa ainda prevalecia no rosto.

— Sei que você é tola por estar caçando de noite na fronteira. Você não...

Ele parou de falar no mesmo momento em que seus olhos encontraram o membro ferido da garota. Uma ruga proeminente formou-se entre as sobrancelhas e os lábios permaneceram entreabertos, o olhar parecia desacreditado no que via.

A reação obrigou a garota encarar a perna, naquele momento suspensa no ar e extremamente dolorida conforme a adrenalina de seu corpo se dissipava. Sua expressão imitou a do rapaz.

O sangue que fluía do músculo e tingia sua calça era escuro, negro como carvão, como breu. Mais uma vez, sua mente não a ajudou. Nada, nenhum pensamento, nenhuma lembrança surgiu. A única coisa que ela sabia era que, de um âmbito fisiológico, a cor do sangue de qualquer ser humano deveria ser vermelha. Qualquer outra coisa diferente, seria sinônimo de algum tipo de desordem no organismo. Pelo menos era o que sua mente lhe dizia.

— Você está fugindo de uma flamekeeper? — o rapaz questionou e logo depois começou a varrer o espaço ao redor com os olhos. Se parecia alerta antes, não era nada comparado com aquele momento.

— Eu... Eu não — balbuciou ela, refletindo sobre suas próprias palavras. O que poderia dizer? Não fazia ideia de quem era, não sabia o próprio nome e muito menos em como havia chegado ali. - Eu não sei.

Os olhos do rapaz ainda estavam atentos em um ponto longínquo, demorando um segundo até caírem novamente sobre a garota.

Flamekeeper — ele repetiu a palavra, mas obviamente, ainda não fazia sentindo nenhum para garota. Deveria fazer? Será que alguém com aquela denominação estranha realmente a estava perseguindo? — Caçadores de nightblood. Pessoas como você — ele abanou a cabeça na direção dela, indicando a perna ferida. — Gaia está atrás de você?

Flamekeeper, nightblood, Gaia, Azgeda... As palavras piscavam em sua mente, uma após a outra, e ela se esforçava para tentar associá-las a alguma coisa. Mas era inútil. Não havia nada. Aquele interrogatório não levaria os dois a lugar algum.

— Eu não sei — sussurrou a garota, tentando colocar toda sinceridade que podia na voz. - Eu não... Eu não me lembro.

O rapaz contraiu a mandíbula e semicerrou ainda mais os olhos. Obviamente não acreditava nela, mas quem poderia culpá-lo? Não havia nada mais estranho do que uma pessoa que não se lembra de estar ou não sendo perseguida por alguém.

— Não se lembra ou não está? — quis saber ele, cético. — E por que infernos você está na beira da fronteira Azgeda? De quantos motivos você precisa para a Rainha da Nação do Gelo cortar sua cabeça?

Os lábios dela se abriram, mas a voz não saiu. Onde ela estaria e o que poderia ter feito para precisar ser morta? Seu estômago se revirou. Aquilo precisava ser um pesadelo, não havia outra explicação. Ela respirou fundo, colou as mãos trêmulas junto ao corpo e começou a se pronunciar da maneira mais segura que conseguiu.

— Olha, eu não sei o que você está falando. Eu acordei nessa droga dessa floresta sem qualquer tipo de memória. Não sei quem é Gaia ou... — ela se esforçou para lembrar do outro nome, mas não conseguiu. - Enfim. E eu também não sei porque infernos sua rainha iria querer me matar. Na verdade - ela fez uma pausa e refletiu as próprias palavras. O rapaz a ouvia com atenção, mas sua expressão guardava uma evidente desconfiança. —, talvez ela não precise me matar. É muito provável que eu já esteja morrendo.

Ela olhou para o próprio sangue, fluindo da ferida aberta e empapando sua calça e meia. Aquela era uma hipótese que fazia sentido. Quem quer ela fosse, não deveria ser uma pessoa saudável. Seres humanos saudáveis, para começar, deveriam ter sangue vermelho. O rapaz acompanhou o olhar dela e voltou a se pronunciar assim que pareceu ter compreendido o pensamento da garota.

— Você não está morrendo - informou ele após alguns instantes. — Bom, talvez não pelo motivo que pensa que está. Mas vai morrer se continuar sangrando e continuar aqui. E ela não é minha rainha. - completou, como se aquela informação fosse extremamente relevante para o contexto.

A garota fechou os olhos de forma apertada, reagindo a dor na perna que, de repente e por um segundo, se intensificou mais. Ela sabia que a mordida não atingira seu osso, ou o sofrimento estaria sendo bem maior. Contudo, precisava fazer algo a respeito se não quisesse perder muito sangue ou ter seu membro infeccionado.

— Precisamos sair daqui agora — falou o rapaz, voltando a estudar o perímetro ao redor. Ele não parecia apreensivo, estava apenas alerta e consciente, provavelmente preparado para o que quer que acontecesse. Fez menção de virar as costas e retornar ao cavalo, mas parou quando percebeu que a garota mantinha a mesma posição, sem sinais que o seguiria.

A garota hesitou. Como saber se alguém é confiável ou não? O fato dele ter salvado sua vida seria suficiente para isso? Não havia como ter certeza que aquele rapaz, de aspecto tão hostil, não faria mal a ela eventualmente.

— Não é como se você tivesse muita escolha, garota do céu. Seu destino não será nada diferente do deles - ele se referiu os lobos mortos com a cabeça. — E saiba que lobos não são as piores coisas dessa floresta.

Os dois sustentaram o olhar um do outro por um instante, até que a garota tomou sua decisão.

Independentemente do que acontecesse, suas melhores chances seriam seguir aquele homem. Se estivesse mesmo fugindo de alguém, certamente seria capturada, não conseguiria correr naquele estado. Ela manteve uma perna ligeiramente suspensa no ar e mancando, seguiu o rapaz em direção ao cavalo.

— Qual é o seu nome, garota do céu? — quis saber o rapaz enquanto ela estudava uma forma de montar no animal sem sofrer a dor da mordida.

"Celina", uma voz desconhecida sussurrou no fundo da sua mente e seus olhos arregalaram em surpresa. Estranhamente, a nuca começou a formiga em um ponto extremamente específico, o resto do seu corpo se arrepiou.

— Celina...?

O rapaz arqueou uma sobrancelha.

— Isso é uma pergunta?

A garota balançou a cabeça freneticamente, negando. Aquela era, na verdade, a maior certeza que ela havia tido até aquele momento.

— Não. Celina. Meu nome é Celina.

Up Higher | Bellamy BlakeWhere stories live. Discover now