Telefonema

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O telefone da casa tocou logo cedo. Me acordou por volta das 5h da manhã. Camilla correu nas primeiras chamadas. Sonolenta, registrei apenas algumas palavras que ela dizia, mas eram coisas sobre saudade e amor. Deduzi então que seria o filho dela. Marcos o nome dele, foi o que Celso me disse.

Já vi fotos dele espalhadas por toda casa, da cozinha ao chaveiro do lado da porta de entrada. Percebi que se tratava de um filho muito amado e claro, senti inveja. Minha mãe teria no máximo uma foto 3x4 de mim. No começo pensei que o garoto tivesse falecido e até me incomodei com a presença constante de sua imagem e seus pertences. Mas como tudo na vida, logo me acostumei e logo também descobri que ele não estava morto e sim num intercâmbio.

Ouvindo as histórias sobre Marcos, eu compreendo porque Camilla torce o nariz pra mim. Perto do filhinho dela eu sou uma completa decepção e eu tenho certeza de que ela não gostaria que eu o influenciasse. Sei que uma hora ou outra Marcos vai voltar e aí, sei também que será a minha hora de partir.

Não que eu já não devesse ter ido, afinal fazem três semanas que estou aqui, mas Celso insiste que eu fique e eu sinceramente, não sinto falta da minha casa. Deixei tudo revirado devido à crise de ansiedade que tive antes de tomar coragem de ir ao aeroporto. Expulso as últimas imagens desse dia da minha mente. Quando elas vêm a tona são como garras afiadas que me perfuram as entranhas e agonizam a alma.

- Eu também te amo filho. – Camilla suspira ao telefone com a voz embargada.

Me encolho na cama para não sucumbir às mãos que vêm afundar meu peito e perfurar os meus pulmões. Eu fico sem ar quando lembro dela. Admito que dentro do meu peito ainda há resquícios de saudade da minha mãe. Por tantos anos eu guardei estes sentimentos num lugar da minha mente onde eu não pudesse encontrar. Fiz questão de misturar junto às lembranças de ódio que tenho da época em que morei com ela, mas agora tudo o que me recordo é de seu rosto e da voz suave me chamado...

Não aguento. Deixo escapar algumas lágrimas teimosas, mas logo retenho-as. Alguém está batendo na porta.

- Baby. – Camilla me acorda para o mundo real. – O almoço está pronto.

- Certo. - Respondo seca e sem olhar para o rosto da mulher prostrada na minha frente.

Na mesa, apenas nós duas e o desconforto. Celso não veio hoje. Vai trabalhar até mais tarde. Ele é a alegria da mesa e também o elo que nos une.

- Posso te perguntar uma coisa? – Odeio esse tipo de perguntas por que sei que elas precedem situações desagradáveis.

- Claro. – Digo enquanto remexo a comida desanimadamente.

- Por favor, não me entenda mal. – Eis o abre alas do inconveniente.

Levanto a cabeça e olho em seus olhos. O olhar afeta as atitudes e as palavras, principalmente quando não se tem total convicção de alguma coisa.

- Onde está a sua mãe? E seu pai?

Deixo o talher cair no prato acidentalmente, fazendo um ruído incômodo e assustando nós duas. Meu coração acelera. Não quero que Camilla me repreenda por riscar sua louça.

Mesmo diante do ocorrido, ela não demonstra arrependimento ou sinal de que me livrará do questionamento. Ela não está insegura de suas convicções.

Um instante de silêncio entre nós. Pensei em prolongá-lo, mas as palavras saíram sem que eu pudesse controlar.

- Não sei onde está minha mãe e não conheço o meu pai. – Respondo achando que posso me safar.

- Como não? – Ela insiste.

Reluto em falar porque as palavras me machucam a medida em que as forço a sair.

- Um dia brigamos. – Eu disse cautelosa. – Eu saí de casa e nunca mais voltei.

- Por que brigaram? – Ela continua cutucando minha ferida.

Meu orgulho me diz para parar, inventar qualquer desculpa e fugir da situação, mas uma força maior me impulsiona a me livrar das amarras que me prendem.

- Porque eu sou uma pessoa difícil e ela também é.

- Aposto que ela sente sua falta.

Subitamente Camilla segura minha mão e transforma a voz incisiva em um som agradável e acolhedor, do tipo que eu não tenho escutado há muito tempo.

- Aposto que ela adotou um gato ou colocou um homem em casa pra me substituir.

- Você é insubstituível querida.

- Ela não me procurou quando eu parti. Não duvido que tenha se mudado ou até trocado de telefone.

- Eu não acredito em nada do que você acabou de me dizer.

- Por quê?

- Por que eu sou mãe e sei que toda mãe sente falta do filho.

- Nem todas. – Argumento pensando nas crianças abandonadas, violentadas e esquecidas.

- Nem todas. – Ela concorda. – Mas aposto que a sua mãe faz parte da maioria.

- Talvez.

- Talvez, olha aí. Já temos uma melhora nesse pessimismo. – Ela me arranca um leve sorriso.

- Por que você não liga pra ela? O telefone está sempre disponível.

- Talvez.

Reparo no porta retrato com a foto de Marcos sorridente e cintilante. Acho que a conversa com ele deixou-a mais animada e empática. Camilla me desarmou com o geste solidário, mas também não esqueço o que mais esta conversa pode significar. Ela quer que eu vá embora. Que encontre minha mãe e tome meu rumo. Não comento sobre isso porque não quero estragar o momento que tivemos agora pouco. O primeiro bom momento que tivemos desde que cheguei aqui.

Limpamos a mesa juntas. Me ofereci para ajudá-la com a louça, mas ela não quis. Me desculpei mais algumas vezes por derrubar o garfo no prato. Ela riu das minhas desculpas. Tenho a impressão de que a presença de Marcos tornaria a convivência com ela mais agradável. Ele surte um efeito renovador na mãe.

Volto para o "meu" quarto. Estico os lençóis por hábito. Camilla sempre os consertava quando entrava aqui. Eu acabei copiando o gesto inconscientemente.

A madrugada vem e com ela minha insônia e minhas tristezas. Travo uma luta contra os maus pensamentos que me atormentam e me escravizam no passado. Me enchem de culpa e de dor. Quero me livrar deles, quero escutar a voz dela.

"Filha".

Mentalizo outra vez. É a lembrança auditiva mais intacta que tenho da voz dela.

Não quero incomodar ninguém, muito menos fazer com que acordem, mas não aguento permanecer na cama, então saio na ponta dos pés, tomando muito cuidado para não esbarrar em nada. O vento frio vem cantar nos meus ouvidos e me arrepio. É a primeira vez que tenho medo da noite.

Chego na sala, mas não tenho coragem de fazer o que pensei que poderia. Sento no sofá e focalizo o telefone. Vou até ele. Hesito. Me aproximo novamente. Decido voltar pra cama, mas rapidamente me volto para a direção oposta. Digito o número que sei decorado. Posso esquecer qualquer coisa, menos este número.

Do outro lado da linha, o telefone chama sem parar. Eu já estava prestes a desistir, quando finalmente fui atendida. Meu coração batia tão rápido e tão forte que eu cheguei a pensar que ela estaria escutando. Será que me reconheceria apenas pelas batidas do coração?

- Alô? – Ela me questiona com a voz sonolenta.

- Oi mãe. – Digo com a boca seca e incrédula do que estou fazendo.

Os instantes de silêncio que vieram a seguir me fizeram derramar lágrimas silenciosas.

- Ah querida, graças a Deus.

Ela estava derramando lágrimas também.

BABYOnde as histórias ganham vida. Descobre agora