Capítulo 9

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"Ah, fico à vontade, mas você não vem

Espero tanto teus sinais

Ah, é madrugada, mas não vem ninguém

De longe eu vejo o temporal"

— Vai, Jéssica, atende! — Bati o pé feito uma criança e ouvi a mensagem avisando que o número que liguei não tinha caixa postal. Tentei mais uma vez, mas não deu em nada. Mandei outra mensagem para ela e botei o celular de lado. 

Encarei a tela do computador com raiva. O que eu estava fazendo? Eu nem tinha chances de conseguir isso, quem eu pensava que era para considerar a possibilidade de ser boa o suficiente para ser escolhida. O negocinho do texto piscava, como era mesmo o nome? Cursor? Isso. Por que eu estava pensando nisso? Não importa o nome, importante mesmo era eu preencher aquela lacuna idiota.

Fale sobre você. O que te qualifica para o programa de intercâmbio em nossa empresa?

Eu era péssima em falar sobre mim, aliás, quem era bom em falar de si mesmo? Pessoas egocêntricas, com certeza. Pessoas normais não falam sobre si mesmas, pelo contrário, nós evitamos qualquer autoanálise que possa levar ao conhecimento de nossas mentes e que nos ajude a resolver nossas questões com nós mesmos. E se fosse para falar alguma coisa, provavelmente só haveria defeitos. Ah, sabe, eu tenho mau-hálito de manhã e quando como pão de alho no churrasco, também suo muito no pé. Agora, quem é que consegue listar qualidades que convençam outra pessoa de que merece uma vaga de intercâmbio de seis meses com tudo pago numa empresa multinacional de arquitetura e engenharia nos EUA que vai mudar completamente o rumo da sua carreira? Ninguém é tão bom assim, não é?

Respirei fundo e levantei da cadeira em frente à mesinha que eu usava como escritório no meu quarto. Fui até a cozinha e peguei um filtro de café no armário. Sempre que eu não sabia o que fazer, preparava um café. Era quase um ritual, abrir o filtro, dobrar as bordas, pôr na cafeteira, pegar o pote ao lado do açúcar, sentir o cheiro familiar do pó de café, encher a colher até ela parecer uma montanha de terra e despejar no filtro branco que logo ficará bege, encher a jarra com água e derramar no compartimento nivelado - duas xícaras, quatro xícaras... - acionar o botão e ver a cor ficar vermelha. O som de sucção era o ruído branco perfeito para pensar sobre o que quer que estivesse me incomodando, seguido pelo aroma de café que se espalhava pela cozinha e casava perfeitamente com o de um bolo assando no forno. Pensei em unir o útil ao agradável e assar um bolo de milho, mas lembrei que minha vó tinha feito bolo de chocolate mais cedo, então não fazia sentido preparar outro. 

Uma parte de mim se decepcionou, tinha alguma coisa especial em preparar um bolo caseiro, desde o começo, não comprar um pronto ou daqueles que só precisa misturar ovo e leite na massa pronta. E combinar o cheiro do bolo no forno com o do café na cafeteira. Combinação perfeita... e a desculpa perfeita para ocupar meu tempo com outra coisa que não fosse pensar nas minhas qualidades. Não seria dessa vez, então peguei uma xícara no mesmo armário, bem do lado dos filtros de papel, e um prato de sobremesa para colocar o bolo. 

— Tá com um carinha triste, minha filha. — Vovó entrou na cozinha com uma bacia de legumes que ela tirou da horta cultivada por ela mesma no quintal. A gente  plantava muitas coisas lá, tomate, rúcula, batata, pimentão, alface, tudo saía das mãos cuidadosas da minha vó, e das minhas e das minhas tias e primas também, a gente sempre ajudava, pois era um trabalho pesado e exigente, que nem sempre minha vó conseguia dar conta sozinha. Mas ela não abria mão da hortinha e a gente também não, era coisa nossa.

Do Nosso Amor a Gente É Quem Sabeحيث تعيش القصص. اكتشف الآن