𝟏; 𝐋𝐚 𝐜𝐡𝐚𝐥𝐞𝐮𝐫.

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Quando se está cego, o corpo e a mente não assumem essa condição e o nível de adaptação é ínfimo. Quando se está cego, tanto o corpo como a psique do ser humano aguardam a volta da visão. Suponhamos que o vidro de um automóvel que vai à nossa frente passe a refletir o sol, No primeiro instante, deixamos de enxergar e todas as nossas reações tornam-se típicas de quem está aguardando a volta da capacidade de ver. Em outros casos, quando há uma breve lesão como quando nos queimamos ou temos algum trauma de córnea ou retina, a sensação de desproteção e insegurança torna-se ainda maior. Continua-se, entretanto, a estar em um estado de espera de que as coisas voltem ao normal e que a vida retome o seu curso, mas às vezes isso pode não acontecer.

Ainda consigo me lembrar perfeitamente de como tudo aconteceu. rápido e doloroso.

13 de outubro de 2016

— Vó, não precisa se preocupar tanto, vai ser uma viajem rápida. — Disse enquanto selava rapidamente a testa de Mirae, que me olhou com certa aflição. — Eu vou tomar cuidado, eu prometo.

— Tudo bem. Divirta-se, meu pequeno.

Me despeço com um abraço apertado da mais velha e vou em direção ao carro cheio em seguida. Se eu soubesse que aquela seria a última vez que veria o seu rosto enrugado, eu teria a apreciado mais.

— Uma tempestade e tanto, você não acha? — Hoseok disse assim que me sentei no banco do Nissan branco.

— Bom, um pouco de aventura não deve ser nada demais. — Jennie o respondeu brevemente enquanto ajustava suas ondas castanhas em um pequeno espelho que Jongin segurava no banco de trás. — Gosto da chuva.

— Eu concordo, apenas vá devagar. — Taehyung complementou, dando leves tapinhas no braço do namorado que nos guiava pela pista escura. — Eu não vejo a hora de escutar Reflections ao vivo, puta merda.

Taehyung estava completamente eufórico naquela noite, afinal, estávamos indo em um show de The Neighbourhood que caiu justamente no dia do meu aniversário, isso era incrível! Eu achava que aquele seria o melhor aniversário da minha vida, e ele realmente seria, se não tivéssemos sofrido uma colisão contra um carro que era dirigido irresponsavelmente por um alcoolizado.

Foi tudo muito rápido. Lembro de estar conversando com Jennie sobre qual seria nossa próxima cor de cabelo. Ela disse que o preto ficaria divino em mim e eu quase acreditei. Taehyung estava cantando uma de suas músicas favoritas com um sorriso enorme no rosto e Hoseok o acompanhava baixinho, trocando olhares com o mesmo pelo pequeno retrovisor.

Jongin estava era o mais calmo no momento, já que ele apenas acompanhava minhas conversas com Jennie e opinava sobre algo vez ou outra. Lembro de ouvi-lo dizer que Jennie estava incrivelmente bonita com aquela calça branca que outrora estaria suja de um tom carmesim. Foi ele que viu o carro desgovernado primeiro, foi ele que se jogou em cima de Jennie primeiro, foi ele que morreu primeiro.

Eu não me lembro de mais nada a não ser os gritos de Taehyung, Jennie aos prantos e da sirene ensurdecedora da ambulância. Senti meu corpo sendo levado e lembro-me de dar um suspiro longo antes de apagar completamente.

Depois já acordei no hospital, sem conseguir abrir os olhos, ouvindo vozes provavelmente ao redor da maca onde estava. Uma voz dizia para alguém que meus nervos ópticos haviam sido totalmente comprometidos com o trauma que sofri na cabeça, e foi naquele momento em que percebi que havia perdido completamente a visão.

Senti a dor rasgar minha garganta e fui rapidamente consolado por uma voz feminina familiar que chorava igualmente, Mirae.

— Desculpe... — Fora tudo que conseguir dizer, com uma certa dificuldade. Minha fala não foi totalmente prejudicada, apenas o choque me deixou sem falar por um bom tempo depois daquilo.

Eu conseguia falar, mas não queria.
Não sabia o que dizer.
Me sentia sufocado e sozinho.

Quatro anos já se passaram desde o acidente e venho recebendo visitas de Jennie e Taehyung regularmente. Não tocamos muito no assunto, ainda estamos nos recuperando daquela noite. Taehyung adquiriu uma depressão depois da morte de Hoseok e Jennie se culpa todos os dias por ter sobrevivido.

Mirae me deixou três anos depois do ocorrido, sinto sua falta todos os dias. Devo toda minha readaptação ao seu esforço por me manter vivo e ficar ao meu lado durante todas as minhas crises esse tempo todo. Ela era um verdadeiro anjo. Agora vivo com a ajuda de Sunmi em algumas coisas, esta que irá se casar em duas semanas.

É fato que a cegueira trás inúmeros problemas ao indivíduo; porém, o pior deles é, sem dúvida, a dificuldade de locomoção. Pessoalmente, sou totalmente contrário a essa assertiva porque eles têm esse título por serem incapazes de fazer coisas que os seres humanos ditos "normais" fazem. Tentemos, então, entender o que é um ser humano normal. Se o definirmos como aquele que não possui deficiências físicas ou mentais, estaremos excluindo dessa relação aproximadamente noventa e nove porcento da população mundial.

Por outro lado, se os seres normais forem os portadores de deficiências suplantáveis, estaremos chegando muito mais perto de incluir nessa categoria oitenta porcento da mesma população. Então tomemos como válida essa segunda definição. Ninguém é totalmente deficiente, porque é capaz de suplantar seus próprios problemas em maior ou menor proporção. Em outras palavras, quando conseguimos "nos ver", estamos deixando de ser deficientes.

— Tem certeza de que vai ficar bem? — Sua voz solene invade meus ouvidos enquanto toco piano vagarosamente. — Céus, estou me sentindo péssima...

— Lee, sente-se. — Peço para que fique ao meu lado e sinto o calor de seu corpo junto ao meu segundos depois. — Eu não quero que fique presa comigo e não quero se sinta assim. Eu estou muito feliz com o que vai acontecer e tenho certeza de que Jeon irá me ajudar tanto quanto você.

Sinto o calor de seus braços ao redor do meu pescoço e logo em seguida suas lágrimas molharem minha blusa. Consigo entender o seu lado, a empatia tem sido algo muito comum nos meus sentimentos. Consigo pensar, mesmo que amargurado, se estivesse no lugar dela.

Eu provavelmente agiria da mesma forma.

— Por favor, não faça isso... — A abraço fortemente, passando a mão por suas costas magras cobertas por uma blusa de lã áspera. — Você não poderia ficar cuidando de mim o resto de sua vida, eu me sentiria péssimo com isso. Não quero ser um fardo para você.

— Jimin, você nunca seria um fardo. — Sinto o calor de sua voz abafada atravessar o tecido de minha blusa. Ela ainda estava chorando. — Não diga isso.

— No fundo você sabe que eu seria. — O calor de seus braços ao redor de meu pescoço se despede do meu corpo e ela se levanta do pequeno banco. Indo para a porta ao lado esquerdo do piano e parando ali por alguns segundos, antes de suspirar e proferir suas últimas palavras antes de sair do quarto.

Vai ficar tudo bem.

E a escuridão se torna tão maior. Estou caindo numa tristeza sem dor. Não é mau. Faz parte. Amanhã provavelmente terei alguma alegria, também sem grande êxtases, só alegria, e isso também não é mau. É, mas não estou gostando muito deste pacto com a mediocridade de viver.
— Clarice Lispector.

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O texto de Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva em "Meus olhos têm quatro patas" foi usado nesse capítulo.

Essa obra está sendo escrita com a ajuda da rmsthetic

Obrigada por ler e essa não é uma história de amor.

𝐒𝐄𝐍𝐒𝐈𝐓𝐈𝐕𝐄 | 𝐣𝐤+𝐣𝐦Where stories live. Discover now