4 - O sonho que sonhei acordada

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Capítulo 4

A Praia do Farol de São Tomé era a última chance que Campos tinha de se redimir. Era uma mancha de areia longa e sem graça, vazia devido ao forte vento do fim da tarde e à ameaça de chuva forte. Mila imaginava há anos como seria levar a irmã ali mas percebeu naquela volta para casa que seu pequeno sonho jamais aconteceria. Via-se sozinha diante das ondas, esperando até que a chuva vindoura a expulsasse dali. Estava sentada em posição fetal sentindo o abraço dos ventos que a maré trazia. Ela tinha um belo discurso em mente sobre aquele lugar, sobre a natureza física dos ventos de convecção, sobre a história da baleia encalhada e também de quando aprendeu a prece do Ave Maria – só não tinha quem quisesse ouvir. Na verdade sentiu-se tão sozinha e carente de um ouvinte que imaginou Pierre ao seu lado. Fingia que os dois estariam ali de férias para conhecer a família dela. Ela tinha tantas histórias a contar que parecia um desperdício deixar o vento levá-las embora. "Foi aqui, Pierre," disse ela.

"O quê? Seu primeiro beijo?"

"Não, seu ciumento..." ela balançou a cabeça, convencendo-se de que de fato estava louca. Pierre era indiferente a tudo. Não era verossímil que ele se importasse com algum velho namorado, muito menos que lembrasse de alguma história dela. "Vamos tentar de novo. Foi aqui, Pierre."

"A história da baleia? Da sua prima?"

"É..." ela se levantou e com um galho em mãos, desenhou um largo círculo no chão. "Não, quer dizer. Essa história aconteceu comigo!"

"Tá, desculpa."

Ela sorriu, finalmente satisfeita com seu Pierre imaginário. Ela interpretava o animal e imitava seus gemidos. "Acho que eu tinha uns dez anos quando ela apareceu aqui. Apareceu de madrugada e tava muito machucada. Na época minha avó era viva, e a gente acampava muito aqui. Eu fui a primeira a acordar de manhã com o barulho. Eu levantei e quando eu vi, tinha um animal enorme sangrando na areia. Por que ele tava sangrando? Eu acho que ninguém sabe. Eu só sei que eu coloquei a mão no corpinho dela, senti a pele dela latejando e fiquei lá. Não sei porquê..." ela secou as lágrimas. "Todo dia eu voltava, e ela me olhava. Não tinha nada a ser feito, não adiantava devolver pro mar. Eu sempre achei que fosse uma metáfora pra vida, sabe? A gente só quer alguém pra tocar na nossa ferida e ir embora sabendo que pelo menos alguém se importa."

"Eu sinto muito."

"A-Aí ela morreu, dez dias depois, e eu chorei muito. Eu chorei como nunca tinha chorado, como se tivesse perdido alguém de quem eu gostava muito. Foi aí que a minha Vó me ensinou a rezar o Ave Maria porque é uma reza que fala da morte e não da vida..." ela hesitou, notando que uma lágrima molhava seus joelhos. "M-mas olha isso: agora eu tô aqui chorando sozinha na frente de alguém que nem tá aqui, que tá enchendo a cara em algum lugar, sem eu nem saber o que é que eu vou fazer agora!" terminou ela, caindo de joelhos com os olhos cheios de lágrimas.

"Seja você mesma."

"Ah, Pierre..." ela deslizou a mão no rosto dele e o abraçou. O abraço dele era áspero como areia e cheirava a maresia, mas era o único par de braços no mundo que se dispunha abraçá-la. Não lhe importava mais que ele fosse uma miragem ou que ser ela mesma tivesse sido a causa de todos os seus problemas, não queria mais se desgrudar do seu namorado imaginário. Levou-o então em um pequeno tour turístico dos seus primeiros anos de vida, como sempre quis fazer com o Pierre real. Começaram pela maternidade onde nasceu, em que ele fez um comentário inexplicável sobre como o mundo seria um lugar melhor se todos as pessoas nascessem na água. Mila não ousou perguntar o motivo daquele comentário, mas o tomou como dogma. Foram então à primeira escola dela mas não acharam o que ver: a empresa tinha falido com a crise e estavam transformando em igreja. A segunda escola já era igreja tinha quatro anos. Mila e Pierre pararam então numa praça qualquer para descansar e discutir aonde iriam após. Queriam seguir a ordem cronológica da vida dela, mas ela estranhamente não se lembrava de nada de interessante que tivesse acontecido entre seus oito e onze anos. Foram por isso prestar homenagens ao túmulo da avó, que era perto dali.

Alguém lê, por favor. Eu precisava muito de opiniõesWhere stories live. Discover now