1 - O preço de nós dois

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Mila Artiles lia num extrato bancário a sua fracassada história de amor. A trama começava com uma cerveja de vinte e cinco reais que não valia o seu preço. "La Roc? Imagina. Eu nunca nem tive lá," mentiu para a gerente. Ela se lembrava tão bem do dia como do sabor terrível de água oxigenada da bebida artesanal. Como esqueceria? Bastou um gole de uma taça para que ela abandonasse os modos, rompesse a mordaça da timidez e cuspisse com vontade no primeiro infeliz que tivesse o azar de estar próximo. Coube naquele dia de cuspir logo em quem para ela era a criação mais perfeita da natureza, o ser destinado a dar razão à sua estranha existência: Pierre Lessa.

– Ai! Desculpa, moço! – disse ainda sem saber quem era a vítima, correndo com lenço em mãos para reparar o dano. Ela apoiou as mãos nos ombros dele, arrastando o pano sobre onde estava molhado. Logo percebeu que era inútil: a cerveja estava impregnada, consagrando a competência do cervejeiro em fazer tudo menos cerveja. Resignada, Mila notou que apenas o emblema da marca na roupa dele custaria um mês de aluguel do patético apartamento que dividia com as colegas da faculdade. Ela olhou dentro dos olhos da vítima com um rosto de gatinho desamparado que o desespero lhe ensinara. Estava pronta para implorar por misericórdia mas logo percebeu que não era apenas desastrada, era blasfema.

Pierre lhe pareceu à primeira vista a prova de que Deus amou uns filhos mais do que outros. Tinha olhos verdes que às vezes eram azuis, cabelo espesso e rosto tão simétrico que Mila achou que tivesse sido feito à medida para uma capa de revista de salão, ou para alguma parede que Boticelli pintou em Milão - ou ele só pintava paredes em Florença? Ela não saberia mais dizer, estava hipnotizada. Não se esqueceu apenas dos ensinamentos do seu curso de história da arte mas também do próprio senso de realidade. Imaginava-se menos no mundo e mais num roteiro comédia romântica, prevendo que aquela singular ocorrência culminaria num belo beijo no terraço em que descobririam o amor. Mais ainda: imaginava o que viria após os créditos, pensando na vida para levar e nos filhos lindos que teriam juntos. O episódio da cerveja sem graça seria apenas uma crônica qualquer, uma tragédia para dois que contaria entusiasmada à mãe e um dia aos netos. Ali ela decidiu que não provaria mais nenhuma bebida naquela noite. Não precisava beber pois já se embriagava com a ideia do Pierre.

– Tá de boas, eu vou sobreviver – disse ele, alimentando ainda mais as fantasias da pobre coitada que não tirava as mãos dos seus ombros. – Podia ser muito pior.

– E-Eu tô muito ferrada, né? Essa camisa deve ter custado tudo.

Ele riu. – Eu não sei!

Embora não fossem nenhuma pechincha, os vinte e cinco da cerveja artesanal foram a única despesa que Mila teve aquela noite e não justificavam a hecatombe financeira que a motivou a procurar sua gerente de banco. Matemática não era o seu forte, mas sabia o bastante para entender que taxa de juros nenhuma no mundo fechava aquela conta incompreensível. O número que justificava a sua miséria não tinha cifra nem propósito na calculadora, era um número de telefone. Pierre já estava de saída com alguém quando ela o surpreendeu. O beijo romântico no terraço teria de esperar. A única cobrança dele pela perda da camisa foi um encontro, e eles o teriam nos próprios termos da Mila.

"Fim do mês no restaurante Broussard's. Quatrocentos e cinquenta reais? Quase o seu aluguel, flor?" perguntou a gerente do banco à Mila, sentindo-se diante de uma criança.

"Tá, essa fui eu mesma que gastei. Eu gosto muito do acervo de arte deles lá. Queria impressionar um amigo, Pierre, que tava lá comigo. Quer dizer, uns amigos. S-Só que eles nem põem preço nos cardápios lá. Acho que eles é que tão no errado. Eu me senti assaltada, sabe?"

A gerente a encarou com ceticismo. "Sei."

Mila quis antes de tudo derrotar no Broussard's a primeira impressão que ela mesma deixara na camisa do Pierre. Seria ela quem colocaria roupas a perder desta vez: vestiu seu vestido mais caro, presente da mãe para seu aniversário de quinze anos (e que ainda cabia), um cordão onde pesava uma pedra de plástico, que suas amigas juravam ter um ou dois poderes mágicos, e também fez questão de portar seus saltos mais altos e caros. Nunca deu chances a pretendentes baixos, embora fosse pequena ela mesma. Ela jamais admitiria, porém na sua concepção, vitória nenhuma na vida tornava um homem maior do que os centímetros que lhe faltavam.

Alguém lê, por favor. Eu precisava muito de opiniõesWhere stories live. Discover now