3 - A maldição das Artiles

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Capítulo 3

A semana progrediu monótona. Mila contava os segundos para a sexta-feira de feriado, em que pegaria o ônibus que ligava a rodoviária Novo Rio a Campos dos Goytacazes, lugar civilizado onde se comia sanduíche e não hambúrguer. Lá ninguém cobraria aluguel dela e não importava a sua idade, voltava a ser criança. Lembrava-se das ruas em que brincava de pique, da tenda do senhor Hashid onde se servia o melhor pão árabe do mundo, e da Praia do Farol onde conheceu uma pobre baleia que estava encalhada. Mila jurava que não existia no Rio de Janeiro um libanês que fizesse um pão árabe que prestasse, um campista soubesse fazer um chuvisco bem feito, uma criança que ainda gostasse de pique, ou uma baleia que quisesse passar perto daquelas praias. Ela mesma se sentia a encalhada, revivendo na cabeça mil passados que poderiam ter sido e não podiam ser mais. E se tivesse insistido para que Pierre fosse ator? E se o tivesse levado de coleira para a audiência com o agenciador? E se não tivesse feito um escândalo no jardim da casa dele? Ela tinha repulsa ao passado, mas o futuro também não era tão promissor pois pensava assustada na conversa iminente que teria com a mãe. Teria de relatar à ela todos os fracassos que acumulava na capital. "O que eu tô fazendo com a minha vida?" perguntava-se diante da professora de introdução a alguma coisa brasileira. Sentia-se perdida no nevoeiro de pensamentos inúteis que a atormentavam.

Um colega com o rosto repleto de espinhas a interrompeu num dia em que ela se via à beira de lágrimas. "Ei, Mila!"

"Oi, Carlinhos," respondeu sem olhar para ele. Gostava daquele menino mas não suportava o bafo de cigarros que ele tinha. Ela não sabia o que ele andava fumando mas estava convicta de que tinha de parar.

"Tu tá vendendo os brigadeiros ainda? Eu tô com uma puta fome, tá ligada?"

Ela apenas franziu a testa. Tinha desistido também daquele pequeno sonho, que a custava muito tempo e mal custeava a sua passagem para casa. Lembrava-se humilhada dos meninos de rua levando seus chocolates embora. "Não, não vendo," respondeu simplesmente.

O rosto do Carlinhos se fechou. "Tá, então," respondeu ele, recuando. Não parecia ter fome, parecia ter pena.

Mila estremeceu, percebendo que até quem não estava sóbrio notava que algo de errado nela. Sua saudade era caso de urgência: mal chegava o fim de semana, ela já estava de malas prontas e com a disposição de tornar os dois dias que ficaria em casa num século. Saiu do apartamento logo na quinta-feira à noite, quando apenas Begônia estava em casa. "Você volta na segunda?" perguntou a bruxa dos olhos vermelhos, já prostrada à frente da TV como se lesse sua bola de cristal.

"Na terça," disse somente, saindo como quem fugia. Em poucos instantes estava na rodoviária prestes a ir para casa. Sua mãe planejava e comprava as viagens de ida e vinda logo no começo de cada semestre, quando o preço das passagens era mais em conta. Quando deixou de ver a Baía de Guanabara pela janela do ônibus, respirou. Não se lembrava da última vez em que tinha respirado, mas devia ter sido antes de beijar Pierre Lessa pela primeira vez. Dormiu aliviada e quando acordou, viu o Rio Paraíba do Sul e achou que fosse sonho. Não era, estava de volta em casa.

Sua mãe a recebeu na rodoviária como se buscasse a filha após um longo dia de aula. Não notou nada de estranho no desespero dos seus abraços e nos olhos cansados de chorar que a menina tinha. "Como você tá linda, Mila!" disse a mulher, olhando a filha como se fosse um espelho de si mesma naquela idade.

"Eu tô um pouco gordinha."

"Ah, mas eu também. Ando muito estressada com tudo isso. A Theresa tá voltando pra escola, é muita pressão. Você nem acredita o que–"

Um estranho tocou o ombro dela. "Dona Artiles? Vamos pra casa?" perguntou ele. Era um homenzinho feio de bigode grosso e graxa no macacão. "Eu tenho que tá de volta na oficina antes da hora do almoço."

Alguém lê, por favor. Eu precisava muito de opiniõesWhere stories live. Discover now