3 - romances sáficos e onde habitam

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PRECISEI CRUZAR O mesmo corredor três vezes para enfim aceitar que estou perdida

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PRECISEI CRUZAR O mesmo corredor três vezes para enfim aceitar que estou perdida. Ainda que todos os corredores sejam iguais, esse maldito pôster motivacional que me encara perto dos extintores faz com que esse se diferencie dos outros, a droga de uma águia alçando voo zombando da minha cara enquanto as letras enormes e chamativas logo acima das suas asas formam a palavra LIBERTE-SE, o que não faz lá muito sentido. Liberte-se de quê? Como? Por quê? Porra, águia motivacional.

Eu estou morta de fome. Queria voltar no tempo e ter me feito tomar café, ainda que eu não goste de comer tão cedo pela manhã. Talvez eu não estivesse tão faminta agora.

Desisto de procurar o refeitório e me acomodo no chão do corredor, logo abaixo da águia, evitando seus olhos vorazes que me encaram como se eu fosse uma presa. Minha mochila chacoalha quando a jogo ao meu lado, meus livros e cadernos se esbarrando lá dentro. Não é possível que não tenha uma alma viva nesse colégio que não esteja no refeitório. Tantos armários de tantos alunos espalhados por esse corredor, mas todos os seus donos precisam estar lá agora mesmo se empanturrando. Muito bacana.

Busco o celular numa tentativa de me distrair e ignorar o estômago vazio. Abro o aplicativo onde leio minhas fanfics e procuro algo para ler na minha lista de leitura, mesmo que tudo na minha biblioteca já esteja lido, muitos mais de uma vez. Eu só quero ler uma história feliz onde a personagem principal vive acontecimentos incríveis, sem precisar se preocupar em passar fome.

Eu amaria ser uma protagonista de fanfic. Aposto que elas não dão valor à sorte que têm.

— Mais que merda!

Ouço o baque de algo alcançar o chão, seguido pelo grito que ecoa no corredor vazio até alcançar os meus ouvidos. Um aparelho celular chega aos meus pés, esse que veio deslizando pelo piso recém-lustrado até parar ao tocar a sola dos meus tênis. O apanho e me levanto, esperando a garota que vem correndo pelo corredor até mim.

— Ai meu Deus, foi mal mesmo — ela se desculpa, pondo as mãos nos joelhos e tentando controlar a respiração já ofegante. — Alguém deixou a porra de um lápis jogado no corredor e... eu acabei tropeçando e o meu celular... voou da minha mão. — Ela finalmente me encara, apontando o indicador no meu rosto. — Ei, você é a Matilda!

— Oi?

Ela ajeita a postura, sorrindo enquanto põe as mãos na cintura.

— A Matilda. Você sabe, a garotinha que tem poderes e resolve contas grandes de cabeça.

Ótimo. Não que eu esteja me sentindo ofendida, na verdade eu até gosto do filme, mas eu entrei na Escola de Boafortuna com o objetivo de ser a pessoa que ninguém lembra a existência até a formatura, mas pelo visto meus planos foram definitivamente por água abaixo. Eles nem sabem o meu nome e eu já tenho um apelido na minha classe. E, merda, hoje ainda é o dia um.

— Ah, eu sou a Mina — ela se apresenta, ainda sorrindo.

Mina é bonita. Os olhos puxados, os cabelos longos presos e os fiozinhos soltos emoldurando o rosto fino. E ela não está de uniforme. Parada no meio do corredor, ela parece uma intrusa nesse colégio enquanto veste essa legging e camiseta mil vezes maior que o seu tamanho.

— Eva — também me apresento, tentando formar um sorriso simpático, algo em que, segundo mamãe, nunca fui lá muito boa.

— O que está fazendo por aqui sozinha? Não vai comer?

— Eu ia, mas...

— Tá perdida, não é?

Assinto, sem jeito.

— Eu te levaria ao refeitório mas eu tô, tipo, super atrasada pra reunião do meu clube de dança. Mas é só você seguir pelo caminho que vim, descer as escadas e cruzar o primeiro corredor à esquerda. Não tem erro. — Mina dá mais um sorriso, mostrando os dentes. — Você pode...

Ela encara as minhas mãos, e eu me dou conta de que estive segurando o seu celular esse tempo inteiro. Entrego o aparelho imediatamente, e ela encara o visor por alguns segundos, dando uma risadinha.

— "Romances sáficos e onde habitam".

Puta que pariu, inferno, merda!

— Ai meu Deus, me desculpa. — A entrego o celular certo dessa vez, meu coração batendo a mil por hora enquanto ela devolve o meu. — A sua capinha é azul como a minha, acabei me confundindo.

— Tá tudo bem!

Busco minha mochila no chão, a águia motivacional me encarando mais voraz e debochada do que nunca. Estou morta de vergonha. O título da minha lista de leitura é tão pessoal quanto minha orientação sexual e, puta merda, totalmente acusador.

— Muito obrigada por me mostrar o caminho — digo, caminhando de costas para longe dela e em direção às escadas. — Foi um prazer. A gente... se vê por aí.

— A gente se vê, sim! — ela responde com um sorriso simpático muito mais verdadeiro e que vem muito mais fácil que o meu. — E, ei.

— Oi.

Mina vai se afastando de mim com passos lentos, também andando de costas. Ela não para de sorrir um segundo.

— Um dia me apresenta um desses romances. Aposto que são ótimos.

Solto uma risada nervosa enquanto assisto ela virar e se afastar, os passos apressados ecoando pelo corredor vazio. E enquanto dou às costas e caminho em direção ao refeitório, finalmente deixando a maldita águia motivacional para trás, eu nem sei se ainda sinto fome.

 E enquanto dou às costas e caminho em direção ao refeitório, finalmente deixando a maldita águia motivacional para trás, eu nem sei se ainda sinto fome

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Todas as Coisas que Eu Não Odeio em VocêOnde as histórias ganham vida. Descobre agora