23° Capítulo - Julgamento

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- Era manhã de véspera de Natal, um dia comum como os outros. Um pouquinho especial por conta da data comemorativa. – eu estava numa espécie de cabine de madeira, onde um homem me conduzira para que eu desse o meu depoimento. Estava um pouco trêmula, os olhos incisivos de Eugênio perturbando-me toda vez que eu vacilava e o olhava. Ele enrugava todo o rosto, espremia os lábios, o maxilar ficava feito pedra, totalmente nervoso, quase que pulando em cima de mim e matando-me.

- Prossiga, senhora. – disse o juiz. Tinha uma barba branca, era calvo, olhos calmos e esverdeados. Ele transmitia segurança.

Respirei fundo.

- Minha mãe havia me pedido para pegar uma fôrma de assar bolo na casa de tia Marli. Eu sempre andei pelas ruas sozinha, ia e vinha sem problemas, mas aquele dia mudaria minha vida, no começo seria um terror, mas depois tudo se suavizaria... Assim que eu entrei, ele não me notou de cara, estava muito entretido com o vídeo adulto que estava passando na televisão, mas, não sei como, ele virou num súbito e me viu, e seus olhos brilharam de um jeito atordoante. E quando eu o vi, ele já me segurava, me impedia, e insistia em fazer-me abrir a boca, eu não fui párea, ali a minha vida já havia acabado... E depois fugi de casa. – eu menti. Se eu contasse total verdade minha mãe e meu pai seriam hostilizados, e mesmo sabendo que eu estava errada, não os colocaria em apuros. – Não queria que eles me vissem daquele jeito.

- Está mentindo, sua putinha. Vou acabar com você! – gritou Eugênio, sem conseguir se conter na cadeira em que estava sentando ao lado de seu advogado, ele ergueu-se cuspindo feito um cão raivoso. Estremeci na cadeira.

- Contenha seu cliente, senhor Thompson! – o juiz martelou a mesa, completamente irritado.

- Tudo bem, meritíssimo. Sr. Eugênio, não piore a sua situação. – pediu o advogado todo fardado de terno e gravata escuros, os cabelos loiros penteados para trás, o olhar inquisidor ameaçando o cliente dele.

– Não se preocupe, senhora, pode continuar. – o juiz aliviou o maxilar. Mesmo apavorada, eu continuei. O coração martelando.

- Foi isso, depois de anos nós nos reencontramos. Eu estava... Estava... – olhei para as pessoas a minha frente, todas sentadas observando-me falar. Mas só um olhar ali me diria o que fazer. Jonas anuiu, sério, logo em seguida pôs a mão no peito como se estivesse dizendo "vá em frente". – Quando eu fui pra rua, tornei-me uma garota de programa. Foi difícil, mas Deus colocou alguém na minha vida que pudesse me amar com os meus defeitos... – baixei a cabeça, sentindo uma repulsa. Houve um murmúrio quando eu pronunciei "garota de programa", as pessoas têm muito preconceito, e eu o senti. – Na noite em questão, procurei uma amiga, estava acontecendo coisas na minha vida naquele momento e eu queria desabafar com alguém, eu não sei bem o que me deu, eu só queria encontrá-la. Inesperadamente, eu o encontrei. – iniciei um choro copioso. O corpo estremecendo. – Mas por algum milagre eu consegui sair de mais uma enrascada. Mas antes, antes ele alegou uma coisa. Ele disse que havia feito a mesma coisa com o meu irmão, Eduardo, falou que fez pior, e que foi tudo premeditado, e empurrar minha tia pela escada fez parte disso. – parei.

O juiz desviou o olhar de mim para as pessoas que estavam sentadas em múltiplas fileiras.

- Isso é tudo, senhora Victória. Guarda – chamou –, retire a testemunha.

Um homem veio rapidamente, abriu a porta da cabine e retirou-me. Ele usava fardamento escuro, botinas de cano longo e um boné preto. Ele segurou minha mão e guiou-me por uma porta acessível para as testemunhas.

Estava ansiosa para descobrir quem seria essa testemunha tão importante. Mas assim que eu entrei na sala, ela estava lá, sustentada por uma cadeira de rodas, o corpo falecido, o olhar impregnado de dor e arrependimento. Tia Marli estava toda imobilizada, ela era a última testemunha, talvez a mais importante. Edinho já havia dado o seu depoimento, o júri e o juiz assistiram sozinhos ao vídeo. Eu escutei tudo o que ele disse, todo o sofrimento, a sensação de sentir-se sujo, saber que estava certo e mesmo assim não dizer nada, saber que poderia perder a família caso dissesse alguma coisa.

Agora só restava tia Marli, e era ela quem havia me visto sendo abusada, e não fizera nada. Nós não éramos apegadas, mas eu sempre a respeitei, e ela sempre foi bondosa comigo, tínhamos uma amizade amistosa.

Fui até ela, curvei-me e beijei seu rosto.

- Ai, querida. Se eu não fosse tão burra já teria feito alguma coisa, mas como você pode ver – ela gesticulou para o próprio corpo e ergueu o rosto com o sorriso torturado –, ele deu um jeito de prevenir tal movimento meu. Mas isso tudo acaba hoje.

E nada mais disse, muito menos eu. Fiquei em choque. Olhei o homem que agora a pouco me tirara da cabine, ele empurrava a cadeira de rodas pela sala. Só ficou eu e Edinho, ele encolhido numa cadeira. A sala era toda branca, alguns móveis, café, sachê de açúcar, adoçante, vasos de plantas naturais, e a tristeza que estava assolando as paredes.

Aproximei-me dele com o máximo de cuidado, ele ainda estava muito abalado por tantos anos de ameaças e abusos. Encostei minha mão em seu ombro, e para minha surpresa ele não saltou, ou correu, sequer tremeu. Apenas pôs a sua mão sobre a minha.

- Estou com você.

- Que bom. – foi o que ele disse.

Nós ficamos ali, eu sentei ao seu lado e esperei. Mas esperar não estava no meu feitio.

Logo levantei impaciente.

Agradeci pela sala da audiência não ser longe de onde eu estava. Bem silenciosamente eu saí pela porta. Na ponta dos pés eu passei para o outro lado do corredor, e me pus a ouvir.

"Eu estava dormindo, muito dopada para realizar algum movimento. Mas eu sabia que mais cedo ou mais tarde minha irmã mandaria sua filha buscar a fôrma. Então disse a mim mesma que deveria acordar e esperá-la. Quando cheguei próximo à escada, vi uma cena que atormenta meus sonhos até hoje. Meu marido estava fazendo coisas erradas com minha sobrinha, eu deveria ter descido, tê-la ajudado, impedir ele de fazer mais alguma coisa... Nossa, foi um choque, um assombro, fiquei sem reação... Ai, quando eu tomei a rédea da situação, ele a arrastou para fora de casa, resmungando sobre ser descoberto... Foi então que eu soube que meu marido era um pedófilo, e eu não sabia o que fazer... Um bom tempo se passou, e eu não estava mais suportando conviver com toda aquela farsa. O coloquei contra a parede, disse que ele estava errado, que ela ter fugido estava errado, a culpa era dele, ora. Quando saí convicta de que deveria esclarecer as coisas para minha irmã e seu marido, fui surpreendida por ele. Acordei em cima de uma maca, meu cunhado e irmã olhando-me, não sentindo minhas pernas. Meu acidente serviu de passagem para ele por em prática mais um abuso. Nunca suspeitei do meu marido, ele sempre foi muito presente, amoroso, não imaginava..."

E perdida por tanta sujeira, eu voltei aos tropeços para a sala. Até me esqueci que estava grávida, que não poderia passar por fortes emoções, mas não havia como evitar, eu tinha que saber.

Não me sujeitei a continuar ouvindo toda aquela monstruosidade, era demais para mim, eu não suportaria ouvir mais nada, seria como colocar uma corda no pescoço e chamar pela morte. Agora caberia ao juiz e júri popular decidirem o que aconteceria com ele.

- O que houve? – indagou Edinho. Eu estava embocando dentro da sala, perdida. Ele veio muito rapidamente, apoiou meu corpo ao dele, e andou comigo até algum lugar que eu pudesse estabilizar meu corpo.

- Mesmo depois de saber o que aconteceu comigo, eu ainda tenho resquícios daquele dia, não importa o quanto eu queira esquecer...

Edinho alisou meu rosto, pasmo.

- Nós faremos isso juntos. Eu a ajudarei, você me ajudará, e assim tentaremos superar. Será uma longa caminhada, mas iremos conseguir. – confortou-me. Ele me sentou numa cadeira.

Eu sorri um pouco magoada. A vida sempre daria um jeito de colocar pessoas em nossas vidas para nos acalentar, por mais difícil que seja.

Garota de ProgramaHikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin