9° Capítulo - Recessão

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Já não sabia quantas vezes acordei e dormi quando ouvi gatos e cachorros revirando latas, pulando de telhados. Sempre pensava que era Isaac chegando. O que falaria para ele? Ele me aceitaria? Ele seria cauteloso e educado? Seria como o Jonas? Teria alguma chance de explicar?

Tentei não pensar muito na personalidade dele. Ouviria muito, e ele teria toda a razão. Entrei na vida dos seus pais. Espera um pouco, Victória. O que pensa que está fazendo? Você tem o celular a seu favor, não seja tola. Isso foi uma maneira de alertar-me.

O ronco fervoroso de uma moto aflorou na rua, os vidros do carro privaram um pouco o som, mas foi audível a sua chegada. Isaac estava à frente do carro, o capacete preto e pontudo escondendo seu rosto. Vestia um casaco de couro cinza, uma calça preta jeans, e botas de soldado pretas. Aparentemente bem apresentável. Só restava ver seu rosto.

Abri a porta do carro e me desvencilhei para fora, apertando o casado de pele contra o corpo. A madrugada bem cortante, o frio já congelava minhas pernas, elas não respondiam corretamente.

Retirou o capacete. Ele era bem novinho, o rosto límpido, a pele parecia uma seda. Os olhos eram claros, um pouco mais escuros que os de Jonas, os cabelos eram castanhos escuros e lisos, e assim que o capacete foi removido, desceram próximos aos ombros. O nariz era pontudo e reto, o rosto quadrado, as maçãs torneadas. Lindo, um pouco diferente do pai, mas havia um quê dele ali. Talvez o jeito de olhar, meio desconfiado e atento.

- Você que é a Victória? – perguntou.

Concordei, sem encará-lo.

- O que tem a me dizer... Que papo é esse de que meu pai foi sequestrado? – a voz ficou um pouco rígida.

- Apenas escute o que foi dito nesta gravação. Não me pergunte como ele fez isso, talvez tenha apertado o botão sem querer, não sei...

Estendi o celular, ele veio até mim. Os dedos eram longos, unhas bem arrumadas. De perto eu vi os lábios; eram rosados e carnudos. Naquela proximidade pude ver o rosto, era magro, mas ainda assim belo.

- O que tem nesta gravação?

- Apenas escute.

Ele deu play, as vozes vieram. Consegui ficar mais distante dele. Dando passos para trás, encostei no carro.

A conversa já estava no final, fiquei mais tensa por ter escutado mais uma vez aquelas barbaridades. O que levava alguém a ser tão cruel? Eu achava que era isso que Isaac se perguntava. A expressão pasma, pálida, sentida entregava o estado dele. Pensei em confortá-lo com um abraço, mas considerei que ele não iria querer.

O jeito como ele voltou várias e várias vezes a gravação – perplexo sem entender, ou até mesmo sem querer entender – da conversa dos pais fez-me sentir-se culpada por tê-lo alertado. A vida dele foi uma farsa, eu vi isso escancarado no seu olhar.

A consequência seria alarmante. Ele com certeza tomaria providências, Jonas deveria significar muito na vida dele, ora, era seu pai.

Quando resolvi dar atenção a Isaac, ele já vinha caminhando em minha direção com alguma convicção importante a me contar. O nervosismo pairava sobre ele.

- Eu sabia que algo iria acontecer – por fim ele disse, possibilitando-me sentir a apreensão da sua voz. – Mas não imaginava ser algo assim tão forte. – a garganta dele travou num soluço.

Braços envolveram meu corpo pequeno. Apesar de aparentar ter tão pouca idade, Isaac era forte, ele me cobria dos pés à cabeça. Meus braços ficaram abertos sem uma mínima reação, não vinha nada em mente para ajuda-lo, nenhuma palavra de conforto. Foi como se ele necessitasse fazer aquilo, abraçar para aliviar o que estava sentindo.

Garota de ProgramaWhere stories live. Discover now