Alice através de Alice, pt. 3, por Delson Neto

99 26 0
                                    

Os cabos se desconectaram da princesa mecânica, caindo pra fora do casulo de vidro. Com um clique, a porta da câmara de repouso se abriu, deixando a criação de Alice enfim vulnerável ao ar do mundo externo. A garota pulou da cadeira, fechando o notebook para apreciar o momento em que a sua obra de arte, enfim, nascia junto à chegada da esperança dentro de si.

A princesa abriu os olhos de jade para o universo. Os cabelos enrolados caindo sobre a pele negra, que ganhava destaque no vestido azul, antes uma roupa da própria criadora. Tudo nela era perfeito. O formato das sobrancelhas, a boca, a forma como se moveu lentamente para sair do casulo, esticando as mãos para que Alice a puxasse. Eram duas partes idênticas de um mesmo sonho, a ideia e a idealizadora, o começo e o fim.

— Estamos vivas? — A princesa fez a língua de sinais com destreza para conversar com Alice.

Movimentando os lábios para facilitar a comunicação, Alice a respondeu enquanto gesticulava no ar:

— Permaneceremos vivas daqui adiante — ao respondê–la, percebeu que a princesa apontava para trás, especificamente pra porta da garagem.

Um rapaz nos seus vinte e poucos anos de maluquice estava em pé ali, com os braços cruzados. O penteado ruivo e desgrenhado deixava claro que tinha acordado há pouco.

Com uma sobrancelha erguida, ele usou a língua de sinais de maneira mais pausada. Tanto tempo longe de Alice o deixara desacostumado a conversar através de gestos calculados:

— Desde quando você tem uma irmã gêmea? — a pergunta se formou. — E devia começar a deixar a casa fechada.

Alice deu um tapinha na própria testa, indignada. Tinha a péssima mania de esquecer de virar a chave no trinco. Ela olhou para o lado, checando a princesa mecânica. Era mesmo uma perfeição. Igor sequer havia notado que não se tratava de um ser humano.

— Não é minha irmã gêmea — disse com as mãos. — É a minha cópia.

Igor observou a garagem com mais atenção, compreendendo. Os cabos, o casulo de vidro, computadores e um céu estrelado pintado no teto. Ele havia se isolado com a família, jogado cartas enquanto esquentava um chá de boldo pra garganta – mania de mãe que curava tudo com chá e comemorado seu aniversário, já a amiga, pelo visto, usara os certificados e a formação em Engenharia Mecânica pra uma distração um tanto quanto exótica.

"Pois Alice, sendo muito peculiar, adora fingir que é duas pessoas.", o rapaz pensou.

— Meu Deus. É igual daquela vez que você fez um coelho com o resto de um relógio —concluiu o garoto, se aproximando da princesa mecânica. — Impressionante, de verdade. Foi nisso que se ocupou na quarentena?

Alice deu de ombros. A princesa olhava para os dois, sem entender muita coisa.

Vai ficar tudo bemМесто, где живут истории. Откройте их для себя